sábado, 17 de março de 2012

Abre aspas da imaginação de Fernanda


Bem a um palmo de distância dos olhos de Fernanda, uma fina linha de luz, que viajara colossais distâncias desde o sol, resolveu passar. Ela se recostara a um poste, aguardando sua condução; ao ajeitar-se, percebeu que, se não se mantivesse no lugar de antes, aquele raio a incomodaria a vista. Estava presa a mais uma coisa.
“Nada como mais um dia. Um dia vazio. Outra vez vou trabalhar cheirando a cigarro. Meu pai e aquele maldito cigarro desde manhã. Só não fuma enquanto toma banho porque ainda não inventaram cigarro de plástico... e porque também é raro que tome banho. Ainda quer um sorriso quando vem me dar beijinho. Os dias de sorriso acabaram. Não sou sucedâneo do sorriso que ele perdeu da minha mãe. Ela já nem deve ter força nos músculos da cara, nem que quisesse mesmo sorrir.”
“Você também vai ficar acabada algum dia.”
“Nunca me entupi de drogas nem passei a vida inteira sem conseguir dormir direito.”
“Não é só assim que alguém se destrói.”
“Ah!, ótimo, ótimo. Discussão bipolar logo cedo, então. Se não fosse o Henrique ficar falando desses trecos de Psicologia e o escambau, talv...”
“Será que o que a Lica disse é verdade, que o viu com a Raquel na fila do cinema outro dia? Preferia não ter ficado sabendo.”
“... é, talvez eu não ficasse remoendo esse monte de dores a todo instante. Ainda, até terça que vem, tenho que pagar a mensalidade da faculdade... ah!, melhor planejar o que tenho para fazer por estes dias... Vejamos...”
“Devolver o livro de Sintaxe, não é? E pegar a habilitação; se tudo deu certo, já deve estar lá na autoescola.”
“Tem também a conta do cartão. E tenho que terminar aquela carta para o Júlio... espero que ele goste. Deverá gostar. A última, ele respondeu com outra tão extensa e alegre! Acho que gosto dele. Ah!, imprimir o trabalho de análise da palestra para amanhã! Será que dá tempo de passar em alguma lan house depois do trabalho?”
“Mas não era para o Gabriel terminar de revisar e depois ele mesmo imprimir?”
“Verdade, verdade.”
Fernanda contava apenas com o subconsciente para divisar a chegada de sua condução. O olhar, no horizonte da avenida, era de uma fixidez inquebrantável; afinal, não fitava nada do plano físico. Houve apenas um lapso na linha de pensamento, após o qual o fluxo passou a verter para questões existenciais, antes que Fernanda uma vez mais se visse num turbilhão de ideias.
“Eles mal sabem por que são, por que estão e por que vão. Olhe só: um bando de pessoas iguais, sonhos bobos iguais... e eu me sinto cada vez mais tragada por isso, e para isso. Só sei nomear isso vazio. Sinto cada vez mais distantes meus princípios – muitos dos quais já deixei de lado. Por que essa pressa? Por que essa necessidade tremenda de enriquecer?”
“Só para ficar mais feliz, lembre-se do ônibus lotado que está para chegar. Nada como começar o dia bem estressada, não? Não dá nem vontade de pegar o Tolkien da bolsa para ler.”
“Pior que não estou mesmo nem com esse ânimo. A gente já fica nervosa logo cedo. Já amanhece sem paciência. Quando tem um tempinho para si, uma folga, um fim de semana, não tem nem cabeça para descansar. Espera! Espera! Qual é aquele que ele está lendo? Vira um pouco, só um pouquinho, moço... Isso! ‘Comer...’”
“‘rezar, amar’. Não vou falar nada; nunca li.”
“Ah!, o ônibus, finalmente. Olhe essa roda, que enorme. Ó roda: símbolo do movimento.”
“Ah!, não, mas não mesmo! O bonitão chega depois de mim e quer entrar antes no ônibus? Não, não, pode subir depois. Isso, isso. É. Lá vou eu. Neste ônibus vazio.”
“É... não deixa de estar vazio. Está vazio de tudo que me interessa. O vazio. O Vazio. Bem, o mundo é mesmo vazio. Pontilhado de infinitas minúcias que pouco, muito pouco o preenchem.”
“Fico imaginando se a consciência e o raciocínio são dádivas benignas ou malignas.”
Fernanda se recostara a uma das lâminas – a esquerda – da porta do ônibus, pois fora a penúltima a entrar; mais para dentro, não havia espaço algum. O “bonitão” estava recostado à outra lâmina – que não se abriria durante o acidente que viria.
“As dádivas que agraciaram Tolkien só podiam ser benignas, contudo. Só uma mente brilhante, dedicada e culta para recriar toda a história do Universo como ele fez. Só alguém muito inteligente para conseguir transcrever a imaginação pelágica do pensamento. E as palavras, as lindas palavras! Uma pena que o mundo transpareça a evidência de que todos os Tolkiens morreram.”
“Queria tê-lo conhecido. Por tão pouco! E pensar que ele esteve sobre este mesmo chão há menos de quatro décadas!”
Fernanda pensava na falta que sentia desse homem que nem conhecera, exceto nos livros. Um carro, enquanto isso, a alguns quarteirões, dirigido por um bêbado ensandecido, vinha correndo com o dobro da velocidade máxima permitida na via. Se encontrariam, este e o ônibus, num cruzamento a três quadras dali.
“E tantos outros já versaram sobre o Desconhecido! Matéria para eterna prosa e poesia, o Universo. Ele existe ou não existe, afinal? Se tem começo e fim, e se estes surgem do nada e caem no nada, no Vazio, existe; mas e além? Afora isso, e se não houvesse seres conscientes para pensar no Tempo, no Universo, no Vazio; ainda todos esses existiriam? Todo o Universo não passaria sem ser notado por nada, sem existir, enfim? A existência concreta não acontece apenas através da consciência de seres inteligentes?”
“Faz todo o sentido. Aliás, não faz sentido nenhum, exceto superficialmente; há uma resposta, sim, que é: o Universo não tem sentido. Se parássemos aí, tudo ficaria bem. Mas nunca pararemos. Eu não vou parar. Será que são muitos os que pensam assim?”
Fernanda se abstraía facilmente, sempre com suas duas vozes dialogando mentalmente. Uma interpolava, completava, indagava, discordava da outra.
Ela então perguntava a si mesma qual seria realmente o motivo da vida instantes antes de se dar conta, no momento em que o carro batia na dianteira direita do ônibus quando este fazia uma curva veloz para a esquerda e a folha da porta na qual Fernanda estivera recostada se abria, atirando-a a vários metros em direção a um poste, de que estava num acidente terrível.
Sua consciência ainda a fez sentir a dor das costelas quebradas e da coluna prensada, mas o imediatamente posterior choque de sua cabeça no poste deu às suas memórias, princípios, certezas, incertezas, alegrias e tristezas eterno oblívio, espalhando tudo que fora Fernanda despedaçado pelo chão da calçada. Inclusive Tolkien, que voara da bolsa entreaberta contra a guia, quase partindo sua brochura em duas.

Fecha aspas da imaginação de Fernanda.

“... Nossa!, por um instante quase senti que essa morte inventada era de fato a minha verdadeira! Sonhei acordada, agora!”
“Depois de ficar imaginando essas coisas, não vou mais pegar ônibus se for para ficar recostada à porta. Muito menos à lâmina esquerda. Devia ter deixado o bonitão entrar na frente, afinal, na elaboração dessa quimera. Talvez surgisse um final menos macabro, assim. Fernanda, às vezes acho que você deveria colocar essa sua imaginação fúnebre no papel. Muitos de seus devaneios dariam bons contos.”
“Será que o pessoal não vai dar uma chegadinha mais lá para o fundo?”