domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Lúcio

Caro Lúcio

Como tens passado? Há tempo não nos escrevemos com a mesma frequência de quando entabulamos esta nossa guerra – faz mais de meia década, não? No auge de nossa peleja, em um só mês correspondíamos-nos por mais de cinco vezes. Conforme viemos nos aproximando de seu desenlace, todavia, nosso contato passou a arrefecer; talvez tenha sido uma forma inconsciente de protelar o final de nossa conflagração, ou o desgaste natural de uma comunicação deveras constante. Além disso, nossos movimentos evidentemente se tornaram mais intricados à medida que conquistávamos, cada um, territórios alheios e caíam os soldados feridos, subjugados; foi-nos mister ponderar ainda mais detidamente antes de cada lance. Decerto também amadurecemos nosso diálogo; conquanto nos tenhamos tornado missivistas pouco assíduos, o teor de nossas mensagens se tornou menos leviano.
Como vai Lisbela? E tuas crianças? Quanto a minha Mônica, antes que me perguntes, te adianto que me deixou há alguns meses; não te contei antes pois me abalara tanto a separação que só de pensar nisso ainda me revolve o espírito.
E meu amado Jeremias, já o principiei nos estudos de nossa bélica arte estratégica. Ainda que incipiente, já esboça bons planos – até mesmo quase me apanhou, três ou quatro vezes, com não pouco elaborados ardis. Praticamos todo fim de semana; Mônica concedeu-me essa última gentileza, e passo álacres sábados e domingos com meu garotinho. Recordas-te de quando encetamos nossa epistolar disputa? Ele havia acabado de vir ao mundo; adversário amigo, como devo ter saturado tua paciência expressando repetidamente meu rejúbilo pelo nascimento de meu herdeiro!
Ah!, foram curtos, céleres anos, mas perduram amplas lembranças. E, embora nossa condição como antagonistas, não foi senão contigo que partilhei muitas de minhas mais íntimas angústias e alegrias?
Digladiaram-se com denodo, nossos exércitos. Recordas-te do primeiro embate? Fora aflitivo; por tanto tempo vínhamos apenas dispondo nossas tropas em praticamente inexpugnáveis formações que esse primeiro contato, durante o qual alguns de meus soldados tombaram, aluiu-me a bravura, e desesperei. Temi pelo pior; estive certo de que tua superior argúcia, já fulgurando, rapidamente te levaria à vitória. Minha cautela de nada mais poderia servir. Até que, naquele deslize de tua prudência, um de meus pelotões sucedeu em tomar teu torreão leste, permitindo a um destacamento de minha infantaria flanquear tuas defesas. Desse momento em diante, nossa belicosa rivalidade abrasou-se; lances cada vez mais industriosos surgiram, pondo em prova nossas menos treinadas habilidades – e, destarte, evoluímos. Mas, desde o dia em que aquele teu bispo negro falhou em teu fito de engendrar um morticínio em minha tropa avançada, observei que menos audazes se tornaram tuas investidas. Tua perícia entrou em declínio. E tuas palavras têm sido um tanto – embora quase indistinguível – macambúzias. Possivelmente notaste a irreversibilidade de minhas vindouras conquistas, a partir dessa última. Claro que me dediquei e aproveitei todas as chances que se me apresentaram para derribá-lo; não é sempre que de tão proveitosa maneira – ao oponente – falha um competente estrategista.
Decerto já adivinhaste meu próximo movimento, caro oponente. Não posso delongar esta já extensa disputa sendo complacente com teus erros. Não posso retroceder meus soldados para procrastinar o iminente ocaso de nosso conflito. Toda guerra chega a um termo. Foram ótimos anos de luta, mas chegou o momento de descansar a mente de tantos estratagemas.
Espero, contudo, que com isso não chegue ao final também nossa amizade, porquanto é tudo, além do aprimoramento de nossas competências, que verdadeiramente conquistamos de edificante, conquanto a recente bruma de guerra nos tenha, aparentemente, distanciado um pouco. Não acredito na viabilidade de um novo repto – não quejando, nem agora. Duelos assim fatigam. Mas ser-me-ia agradável qualquer sugestão para uma nova e distinta contenda – à qual, após algum repouso, aceitaria prazerosamente.
Como já disse, é certo que sabes qual será meu próximo passo, em seguida ao qual poderemos outra vez dispor redivivos nossos soldados – que há tanto jazem sucumbidos – em nova formação contra novos oponentes, e ansiaremos pela miríade de possibilidades de novas táticas e diferentes desfechos. Ainda assim, não deixarei de denotá-lo ao final desta mensagem, como sempre fizemos.
Que tal agora se marcássemos de nos conhecer pessoalmente, meu caro?
Boas festas de fim de ano, e um grande abraço de teu adversário enxadrista,

Felipe                                                                              





Be5++

Preciso, sim, e me perdoe por isto, dizer mais que com códigos; com a palavra: Xeque-mate.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Silogismo aristotélico

     Segundo Aristóteles,

     Todo homem é mortal;
     Sócrates é homem;
     Portanto, Sócrates é mortal.

     Premissas verdadeiras, conclusão verdadeira. Agora, vê a diferença que um artigo definido faz:

     Todo o homem é mortal;
     Sócrates é homem;
     Portanto, Sócrates é mortal.

     Ainda estão corretas, as premissas?
     Pensa: cada homem é mortal. Que significa mortal?
     - Ora, aquilo que morrerá, um dia. Ou, aquilo que causa morte; mas esta acepção não convém ao caso.
     Sim. E o que morre em nós? Morrem as células, os tecidos, os sistemas. Morre o corpo, morrem os sentidos.

     Todo o homem é mortal;
     Sócrates é homem;
     Portanto, Sócrates é mortal.

     Sim, as premissas ainda parecem corretas. Mas eu não dissera sobre uma diferença – substancial, pela forma como anunciei – nascida da inclusão de um mero artigo?

     Todo o homem é mortal.

     O homem é mortal por completo?
     - É.
     Morre o corpo, morre a mente, morre tudo. Alma e espírito, morrem? Até onde sabemos, não há resposta. Nem uma perfeita definição científica desses termos. De qualquer forma, não temos mais contato com essências etéreas que deixam seus corpos, após sua morte – não um contato cientificamente comprovado, pelo menos.

     Sócrates é homem.

     Sócrates morreu. Sócrates foi, e não mais é, homem. Sócrates foi um filósofo de renome, e sua contribuição foi no mínimo imensa para a Filosofia e para a humanidade – ou não se demarcaria a história e o estudo daquela em, dentre as segregações uma das principais, "pré-socrática", que diz sobre os que vieram antes.

     Portanto, Sócrates é mortal.

     Não há sequer resquícios de sua carne, e os farelos de seus ossos já se integraram à terra, à água e ao ar, de modo que não há mais algo vivo, uno, a que possamos chamar Sócrates. Talvez pudéssemos dizer que há partículas de Sócrates por todo o globo, após milênios de sua morte, considerando o destino delas que se cogitou logo há três linhas. Entretanto, não é uma molécula de Sócrates em cada canto do mundo que faz daqui um lugar mais interessante.
     Mas se Sócrates morreu, porque ainda parece que nos diz suas ideias e teorias através dos séculos? Tudo que Sócrates teorizou foi repassado por gerações, chegando, embora não incólume, a nós hoje. Mas é apenas Sócrates quem tem o que dizer há milênios? Não; num só dia ouvimos dizer muito de vários que já deixaram o mundo. De vários mortais que já não existem. Ainda faz sentido dizer "todo o homem é mortal" quando a inteligência coletiva da civilização humana é fundamentada e modelada com sabedoria há tanto tempo nascida, misturada à sabedoria dos homens ilustres de hoje e dos que ainda virão, e assim para sempre? Sócrates está mesmo morto?

     Algo abstrato em cada homem é imortal;
     Sócrates é homem;
     Há algo abstrato, que todo homem tem, imortal em Sócrates;
     Se há algo abstrato imortal num todo, o todo não físico é imortal;
     Portanto, Sócrates é, em parte, imortal.

     O que se escreveu é óbvio. Mas não é possível ser simples para escrever isso com esse jogo de premissas. Talvez, de outra forma:

     O conhecimento de cada homem, se este o difunde, é imortal;
     Difundir o conhecimento torna homens imortais;
     Sócrates é homem;
     Sócrates difundiu conhecimento;
     Portanto, Sócrates é imortal.

     A lógica nos forçaria a sermos mais precisos, o que não é possível com poucas explicações. A penúltima remessa de premissas é mais precisa, mas mais confusa, que a última. Contudo, sabe-se bem que homens vivem por séculos. Inconscientemente, todos aspiram por esse tipo de imortalidade.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Gealt

     “Você”

     Horst sentiu as palavras mais do que ouviu. Pareciam estar entrando em sua cabeça sem passar pelos ouvidos. Era a voz de Gealt, mas Horst não conseguia identificar seu rosto para ver seus lábios moldando as palavras. Tudo o que via era um céu sem estrelas se erguer distorcido por cima do monstro que olhava para baixo, em sua direção. Era um vulto negro, uma sombra sólida flamejante, seus olhos ardiam em chamas que de tão intensas pareciam vir do próprio inferno.

     “É a sua vez de cair no abismo”








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Velhos projetos.