Havia um rapaz que, tomado por algum tipo de desespero, descontrole, desassossego, temporária insanidade, não conseguia parar de roer unhas e dedos. Só parou quando conseguiu pegar e usar uma caneta em folhas de seu caderno. É bom salientar que tal rapaz cometia tais atrocidades com seu corpo justamente por estar em tão excruciante furor, e sabia que, se tentasse pegar uma caneta e escrever sem ter se acalmado daquele delírio, tudo que tentasse redigir se esvairia – o que tornaria tudo ainda pior.
Não há necessidade de se falar sobre todos os repuxos musculares involuntários que o dominaram e se repetiram sem nenhuma constância, em espasmos imprevisíveis, enquanto pensava ideias que ainda serão descritas – algumas, pelo menos –; mas é importante saber que tudo se passou enquanto duraram os sucessivos frêmitos. Todas as conjeturas nasceram enquanto o rapaz tartamudeava monossílabos arrítmicos e se virava e se retorcia e praguejava e ficava cada vez com mais receio de que aquilo se seguisse para sempre.
Quanto a isso, até mesmo levou-se a se indagar se não era prisioneiro de sua própria mente. Podia ser que tudo que sentia e vivia fosse uma simulação à qual ele mesmo se havia induzido a experimentar; seu verdadeiro corpo poderia estar em condições de aparente paralisia cerebral, em algum lugar obviamente fora dali – pois onde estava seria apenas fruto de uma industriosa imaginação. O que tornaria tudo em que achava acreditar e valer a pena motivações inúteis; todas as perguntas encontrariam respostas já elaboradas pela sua própria inventividade, que, incompreensivelmente, era mais sagaz que sua própria projeção mental interna. Contudo, não deixavam de ser interessantes as probabilidades advindas desse devaneio: se fora imaginativo o suficiente para se prender – prender sua consciência – em seu próprio íntimo, também acabava de o ser para tirar tal conclusão; doravante, assim também seria para encontrar a saída de volta à realidade de onde viera, escapulindo de tão intricada quimera.
Claro que considerou a hipótese de que, ainda que voltasse a tal real realidade, esta ainda poderia ser o invento de uma outra mente, tão mais pujante – mas que, ainda assim, continuaria sendo a sua própria. E daí por diante, indefinidamente, infinitamente. Entretanto, assim que o lampejo de tal dúvida o atingiu, decidiu que tentaria não agravar ainda mais a já arrebatadora loucura que se havia instaurado em si.
Em vez disso, pensou sobre como jogar objetos estilhaçáveis, ou pelo menos desordenáveis, em paredes alivia fabulosamente muitas tensões. Logo se imaginou arremessando a plenas forças um maço embalado de papel sulfite na parede de certo aposento de determinado setor de certa loja em que trabalhava. Tal aposento era, também, além de almoxarifado, sala de descanso. Mas, como tudo sempre parecia conspirar contra o extravasamento de sua fúria contida e acumulada ao decorrer de algum tempo, decerto colegas amistosos, os quais o rapaz não gostaria de assustar, estariam por lá. E foi o ocaso dessa anárquica ideia.
O rapaz discutia intensamente, outrossim, consigo e, alternadamente, com algo que nomeava como A Voz; parte do diálogo pode ser visto a seguir:
- Foi sempre isto: estive, desde que atendo por mim, cuidando de me privar de respirar para que outros tenham mais ar.
- Vê, agora, como isso te leva às raias da loucura, quando te escapa ao controle; quando ter todo o ar de que precisa se torna inútil.
- Sim, e foi uma combinação mesmo banal de eventos que disparou esta reação.
- É, decerto, algo martirizante.
- Que piora quando percebo que o peso que minhas palavras têm, quando lidas, não é o mesmo que sinto e queria expressar quando as escrevo. E cada vez mais creio que isso não se deve à minha imperícia dissertativa; culpo as interpretações, que são cansativamente sempre subjetivas demais, mesmo quando quero dizer, com todas e quaisquer palavras que sirvam, que estou perdendo gradativamente o que vulgarmente se chama sanidade.
- Melhor que se acostume, já que está apenas no início desta empreitada. Situações mais desgastantes, embora mais recompensadoras e valiosas, virão; E você é orgulhoso; não renunciaria a esta que é sua maior escolha.
- Não, não renunciaria. Se me fará mais bem que mal, não sei. Contudo, ainda afirmo, convictamente, que adoro esta efusão de eloquência que mal consigo controlar, que teço com inúmeras falhas – quase imperceptíveis; mas, da trama original que me invadiu a mente, nem tudo consigo recriar.
- Será que chegará algum dia em que voc...
- Ei, veja! Estão falando de nós!
- Como assim?
- Bem aqui! Olhe o que acabo de ler: “me invadiu a mente, nem tudo consigo recriar”.
- ...
- E mais! Olhe, que barato!: “Estão falando de nós!”. Outra parte, ainda mais interessante: “E mais! Olhe, que barato!: ‘Estão falando de nós!’. Outra parte, ainda mais interessante: ‘E mais!, Olh...
- Chega! Meu jovem, não posso crer. Você acaba de se dividir mais uma vez.
- Eu somos três, agora, então?
- É o que parece. Quero ver como fará para lidar com isso, agora. Com mais isso.
- Ai de mim!
- ... a propósito, como estou? Pareço seguro no que falo? Já que você agora se deu a se tornar ainda outro, não te custa dar uma olhadela em como estamos...
- Está orgulhoso e palpitante, como sempre.
- Palpitante?
- Beirando o atrevimento. Nem sei como ainda te tolero.
- Ora!
- Creio que preciso retomar, agora. Mas, devo fazê-lo com habilidade. Portanto, voltarei a ter com você.
- Pois tenha.
- Algo que me desanima em tudo isto é que quando...
- ...
- ...
- ...
- ...
- ... quando o quê?
- Quando... ora! Na verdade, só abri um novo diálogo qualquer e o deixei no ar para que o outro retomasse sua narrativa!
- O outro foi embora, não vê? Sobramos nós dois apenas, agora.
- Grande consolo para mim, sobrarmos apenas você e eu!
- Se está insatisfeito, despeça-se. Não faço questão, como é evidente que você também não faz, de ater-me a este monólogo pouco edificante.
- E lá saberei eu sobre o quanto posso aprender apenas por reflexão?
- Isto ainda extrapolará o significado de reflexão. Ainda se tornará segregação intelectual. Cuida-te.
- Para lá com tais conjeturas. Deixando isso de lado; sinto-me em melhor forma que da outra vez.
- Destarte, continue progredindo, custe o que lhe custar.
- Sim. Claro. Obrigado.
- Sim.
- ...
- ...
-
- ...
-
- Ora! Pois volte aqui! Não podemos nos despedir normalmente, antes que me faça de bobo, como da outra vez?
- Oh!, sim, sim! Até breve.
- Até.