domingo, 24 de outubro de 2010

Novo descontrole, seguido de novo diálogo com a Voz

     Havia um rapaz que, tomado por algum tipo de desespero, descontrole, desassossego, temporária insanidade, não conseguia parar de roer unhas e dedos. Só parou quando conseguiu pegar e usar uma caneta em folhas de seu caderno. É bom salientar que tal rapaz cometia tais atrocidades com seu corpo justamente por estar em tão excruciante furor, e sabia que, se tentasse pegar uma caneta e escrever sem ter se acalmado daquele delírio, tudo que tentasse redigir se esvairia – o que tornaria tudo ainda pior.
     Não há necessidade de se falar sobre todos os repuxos musculares involuntários que o dominaram e se repetiram sem nenhuma constância, em espasmos imprevisíveis, enquanto pensava ideias que ainda serão descritas  – algumas, pelo menos –; mas é importante saber que tudo se passou enquanto duraram os sucessivos frêmitos. Todas as conjeturas nasceram enquanto o rapaz tartamudeava monossílabos arrítmicos e se virava e se retorcia e praguejava e ficava cada vez com mais receio de que aquilo se seguisse para sempre.
     Quanto a isso, até mesmo levou-se a se indagar se não era prisioneiro de sua própria mente. Podia ser que tudo que sentia e vivia fosse uma simulação à qual ele mesmo se havia induzido a experimentar; seu verdadeiro corpo poderia estar em condições de aparente paralisia cerebral, em algum lugar obviamente fora dali – pois onde estava seria apenas fruto de uma industriosa imaginação. O que tornaria tudo em que achava acreditar e valer a pena motivações inúteis; todas as perguntas encontrariam respostas já elaboradas pela sua própria inventividade, que, incompreensivelmente, era mais sagaz que sua própria projeção mental interna. Contudo, não deixavam de ser interessantes as probabilidades advindas desse devaneio: se fora imaginativo o suficiente para se prender – prender sua consciência – em seu próprio íntimo, também acabava de o ser para tirar tal conclusão; doravante, assim também seria para encontrar a saída de volta à realidade de onde viera, escapulindo de tão intricada quimera.
     Claro que considerou a hipótese de que, ainda que voltasse a tal real realidade, esta ainda poderia ser o invento de uma outra mente, tão mais pujante – mas que, ainda assim, continuaria sendo a sua própria. E daí por diante, indefinidamente, infinitamente. Entretanto, assim que o lampejo de tal dúvida o atingiu, decidiu que tentaria não agravar ainda mais a já arrebatadora loucura que se havia instaurado em si.
     Em vez disso, pensou sobre como jogar objetos estilhaçáveis, ou pelo menos desordenáveis, em paredes alivia fabulosamente muitas tensões. Logo se imaginou arremessando a plenas forças um maço embalado de papel sulfite na parede de certo aposento de determinado setor de certa loja em que trabalhava. Tal aposento era, também, além de almoxarifado, sala de descanso. Mas, como tudo sempre parecia conspirar contra o extravasamento de sua fúria contida e acumulada ao decorrer de algum tempo, decerto colegas amistosos, os quais o rapaz não gostaria de assustar, estariam por lá. E foi o ocaso dessa anárquica ideia.
     O rapaz discutia intensamente, outrossim, consigo e, alternadamente, com algo que nomeava como A Voz; parte do diálogo pode ser visto a seguir:
     - Foi sempre isto: estive, desde que atendo por mim, cuidando de me privar de respirar para que outros tenham mais ar.
     - Vê, agora, como isso te leva às raias da loucura, quando te escapa ao controle; quando ter todo o ar de que precisa se torna inútil.
     - Sim, e foi uma combinação mesmo banal de eventos que disparou esta reação.
     - É, decerto, algo martirizante.
     - Que piora quando percebo que o peso que minhas palavras têm, quando lidas, não é o mesmo que sinto e queria expressar quando as escrevo. E cada vez mais creio que isso não se deve à minha imperícia dissertativa; culpo as interpretações, que são cansativamente sempre subjetivas demais, mesmo quando quero dizer, com todas e quaisquer palavras que sirvam, que estou perdendo gradativamente o que vulgarmente se chama sanidade.
     - Melhor que se acostume, já que está apenas no início desta empreitada. Situações mais desgastantes, embora mais recompensadoras e valiosas, virão; E você é orgulhoso; não renunciaria a esta que é sua maior escolha.
     - Não, não renunciaria. Se me fará mais bem que mal, não sei. Contudo, ainda afirmo, convictamente, que adoro esta efusão de eloquência que mal consigo controlar, que teço com inúmeras falhas – quase imperceptíveis; mas, da trama original que me invadiu a mente, nem tudo consigo recriar.
     - Será que chegará algum dia em que voc...
     - Ei, veja! Estão falando de nós!
     - Como assim?
     - Bem aqui! Olhe o que acabo de ler: “me invadiu a mente, nem tudo consigo recriar”.
     - ...
     - E mais! Olhe, que barato!: “Estão falando de nós!”. Outra parte, ainda mais interessante: “E mais! Olhe, que barato!: ‘Estão falando de nós!’. Outra parte, ainda mais interessante: ‘E mais!, Olh...
     - Chega! Meu jovem, não posso crer. Você acaba de se dividir mais uma vez.
     - Eu somos três, agora, então?
     - É o que parece. Quero ver como fará para lidar com isso, agora. Com mais isso.
     - Ai de mim!
     - ... a propósito, como estou? Pareço seguro no que falo? Já que você agora se deu a se tornar ainda outro, não te custa dar uma olhadela em como estamos...
     - Está orgulhoso e palpitante, como sempre.
     - Palpitante?
     - Beirando o atrevimento. Nem sei como ainda te tolero.
     - Ora!
     - Creio que preciso retomar, agora. Mas, devo fazê-lo com habilidade. Portanto, voltarei a ter com você.
     - Pois tenha.
     - Algo que me desanima em tudo isto é que quando...
     - ...
     - ...
     - ... quando o quê?
     - Quando... ora! Na verdade, só abri um novo diálogo qualquer e o deixei no ar para que o outro retomasse sua narrativa!
     - O outro foi embora, não vê? Sobramos nós dois apenas, agora.
     - Grande consolo para mim, sobrarmos apenas você e eu!
     - Se está insatisfeito, despeça-se. Não faço questão, como é evidente que você também não faz, de ater-me a este monólogo pouco edificante.
     - E lá saberei eu sobre o quanto posso aprender apenas por reflexão?
     - Isto ainda extrapolará o significado de reflexão. Ainda se tornará segregação intelectual. Cuida-te.
     - Para lá com tais conjeturas. Deixando isso de lado; sinto-me em melhor forma que da outra vez.
     - Destarte, continue progredindo, custe o que lhe custar.
     - Sim. Claro. Obrigado.
     - Sim.
     - ...
     - ...
     -
     - ...
     -
     - Ora! Pois volte aqui! Não podemos nos despedir normalmente, antes que me faça de bobo, como da outra vez?
     - Oh!, sim, sim! Até breve.
     - Até.

domingo, 17 de outubro de 2010

O final de todas as histórias

     Naquele estado que beira a inconsciência, logo pela manhã, enquanto não se sabe se se quer dormir ou acordar, ou se se está de fato dormindo ou acordado, recordei-me de algumas grandes histórias que há algum tempo li e assisti. Histórias de destinos isolados, de uma só alma que vagou a esmo pelos labirintos tortuosos de sua sina; histórias de destinos entrelaçados, em que uma única decisão alterava os desfechos de inúmeras vidas.

     E vi como todas elas serão obliteradas pelo tempo - acabo de ler "A Máquina do Tempo", de Wells, e estou suscetível a este tipo de pensamento -, por mais que implorem por sua imortalidade. Todos os livros se tornarão ilegíveis, de tão corroídos. Todo o fulgor de belos dias, esquecidos como se nunca tivessem existido. Todo o amor que dediquei... não terá valia quando os dias se aproximarem de seu ocaso.

     Os grandes desafios da vida, os grandes amores, abraços, beijos, os idílios de romances nunca consagrados, as tragédias que tanto nos infligiram dores incomensuráveis, e ainda mais os pequeníssimos detalhes, os olhares e pestanejos, uma breve expressão de angústia, ou outra, de rejúbilo; tudo será esquecido daqui a alguns milhares, ou mesmo dezenas, de séculos. Ou ainda menos. Eu, por exemplo, desconheço a história da trajetória de vida de meu bisavô, de como ele conheceu minha bisavó, de como se firmou o desejo de construir nossa família em seus íntimos; uma história que surgiu e feneceu sem que ninguém tomasse notas. E de seu pai, então? A única coisa que restou é a certeza de que houve uma história, talvez bonita, talvez triste, em cada geração. Nada mais.

     A esperança que nos resta é a de que alguém, ou alguma coisa, esteja observando todos os eventos e nossas relações. E nunca se esquecendo. Só assim poderemos viver e morrer tranquilos, certos de que seremos lembrados, de que valeram alguma coisa os esforços que empreendemos, de que todas as alegrias que vivemos continuarão sendo alegres.

     Digo isso por mim, mas devo não ser o único.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O acesso bloqueado ao terraço

     Era o décimo segundo andar. A refeição não fora das melhores, mas havia batata em bolinhas verdadeira e inesperadamente esféricas, e um bife acebolado um pouco menos duro que o normal. Sentei-me e ouvi Melissa's Garden, e ia começar a ouvir Generator – esta música vem me trazendo boas lembranças (de uma época em que não a conhecia, entretanto) quando fui convidado a tomar lugar a uma mesa próxima, com alguns colegas. Instantes antes, de soslaio, vi quem viria me convidar se aproximando e, como seu trajeto parecia ter não outro destino que não a mim, parei a música um momento antes do cutucar em meu ombro.
     Aceitei o convite, embora, além de não apenas querer ouvir a música, também pretendia sair sorrateiramente e procurar o canto menos movimentado de todo aquele prédio para ler assim que terminasse a refeição.
     O que, se eu fosse supersticioso, seria árdua tarefa. Todos os seis andares de loja a parte acessível para clientes eram inadequados; sempre haveria alguém para passar pelo canto mais isolado, pelo sofá mais esfarrapado que eu escolhesse para ou perguntar onde ficava o banheiro de clientes, ou onde estava o gerente, ou se sentar para conversar. Havia a sala de almoxarifado do meu setor, mas era tão movimentada quanto a loja, e ainda pior: qualquer um que entrasse certamente diria alguma coisa, por mais que eu me esforçasse em parecer absorto enquanto leio e ouço música sentado a um canto, de forma a deixar visíveis os fios dos fones de ouvido e meu olhar concentrado e indesviável. Pior ainda era a sala de "leitura" do décimo primeiro, na qual conversavam aos brados os que lá dentro se sentavam para repousar. Enfim, sobravam-me os seguintes: o Shopping Light mas encontrar um banco agradável levava tanto tempo que consumia quase todo o restante do horário de almoço ; as escadas de incêndio do lado dos elevadores mas, a menos que ficasse circunvagando pelos degraus, as luzes automáticas se apagariam rapidamente, e não havia janelas ; as escadas de incêndio do outro lado mas, embora houvesse janelas por lá para iluminar, era um lugar de grande movimento, com funcionários subindo e descendo andares correndo ; havia as escadas de incêndio paralelas a essas, acessíveis por portas laterais em cada andar e, embora eu costumasse andar por ali com tranquilidade, por mais que digam que são assombradas, possuem o mesmo problema das escadas do outro lado da loja: não têm janelas. Por fim, há uma sucessão de escadas deste último lado que vão até o décimo quarto andar; e até lá, sim, ninguém vai. Pois o décimo terceiro encerra um estoque de produtos fora de linha e defeituosos, sendo visitado apenas em raras ocasiões. E o décimo quarto... bem, os elevadores só vão até o de baixo, portanto, nem se menciona a existência daquele.
     Passei minutos a mais que o planejado, sem música ou leitura, em confabulações conspirativas à mesa com meus colegas. Por fim os deixei, pois terminara antes minha refeição. Decidido a dedicar os dez últimos minutos de meu intervalo a Stephen King, pedi licença e me esgueirei para fora do refeitório e em direção ao décimo quarto andar. Cansando um pouco os joelhos por sempre subir num ímpeto pulante, alcancei o final daquelas escadas, onde poucos haviam pisado. Lá, encontrei um deleite: um acesso ao terraço. Só que minha felicidade não era completa, pois ainda que avistasse o horizonte cheio de picos das torres da cidade através de um portão enferrujado de barras de ferro, este se encontrava trancado e, embora o cadeado se encontrasse em péssimo estado, embora fosse fácil o quebrar e sair dali para o terraço e estar acima de toda aquela cidade, eu não o faria. Não, ainda não; por mais um triz, talvez. Contentei-me, agora esquecido do livro que carregava, em olhar por através da grade do portão o céu de nuvens curtas e frágeis que se apresentava sobre grandes hotéis e edifícios comerciais; e toda aquela cena, de onde eu a via, naquele silêncio  só quebrado pelo ruído turbulento, mas distante, quase obliterado, da casa de máquinas dos elevadores, que operava nas proximidades , fazia-me sentir como se fosse o último dos homens dali, último sobrevivente de uma cidade devastada e sem vida, à exceção de pássaros que sobrevoavam ao acaso e chilreavam nos ermos.
     O tempo que passei contemplando aquela paisagem não se podia contar por quaisquer meios ou símbolos; e como que sonhei, pego numa quimera, que estivesse mesmo no auge da exaustão de toda uma outra vida; e senti todo o seu peso, todo o tédio pós-apocalíptico de ser o eterno observador solitário de uma paisagem esplendorosa e, ao mesmo tempo, sombria. Não soube, e talvez queira mesmo ainda não saber, qual vida preferir. Não sei se me prefiro imaginando mundos paralelos de tragédias mil ou se seria melhor narrando o ocaso da civilização em primeira mão.
     Com pesar, forcei-me para fora daquele transe sublime. A hora de passar o crachá urgia. Com um leve espanto, constatei que, se estivesse mesmo na vida que imaginara há pouco, assim que me voltasse da vista através da grade para as escadas, percebendo quão sombrio era aquele lugar, teria descido alguns lances aos pulos fugindo de fantasmas nos quais talvez tivesse passado a acreditar.