sábado, 7 de setembro de 2013

Um episódio - parte 1

Há pouco, a última de meus companheiros foi morta: ela atirava, da sacada da casa onde havíamos resistido sozinhos por dois dias, contra os soldados; mas alguém conseguiu subir por algum ponto cego da casa e cortou-lhe o pescoço. Quando vi, corri contra o desgraçado, lutamos e, após levar eu mesmo uma facada na perna, derrubei-o igualmente esfaqueado para o chão a três andares de altura. Com gosto vi que não mais se mexeu após a queda.
Voltei-me imediatamente a ela, entretanto não pude apreciar a luz de seus olhos se esvaindo, pois eu demorara na luta contra o invasor; já era sem vida, o corte fora demasiado profundo. A pele de seu rosto estava absurdamente suja, assim como a minha. Havia tempo não podíamos nos limpar, porque mal dormir era-nos possível. Agora, bem mais do que antes, o cheiro de sangue pairava conosco, enquanto eu a envolvia nos braços; mas desta vez não era o cheiro do sangue dos soldados que matáramos, mas sim do seu, que, escorrido, começava a se espalhar em sua camiseta encardida.
Mesmo sob aquelas circunstâncias horríveis, havia uma beleza indescritível em suas feições. Minha perna machucada, eu a esqueci naquele momento; pois amava Aline e odiava o Novo Regime, que acabava de matá-la, e que já matara todos os outros que me eram caros no mundo. Eu a amava, contudo, mais do que já amei qualquer um; pois pode até ser possível não amar a última pessoa amiga na iminência da morte, mas não alguém como ela. Havia nascido para ser amada mesmo nas condições em que o amor mais evita surgir. Era bela no vigor belicoso e na destreza com que manejava o rifle, e em como acostumou-se logo à rotina de assassinatos em que passamos a viver; era bela em todas essas coisas, e em outras, e sua beleza perdurará no chão por ela metralhado em seu esforço para nos defender, esforço que levou à morte diversos soldados que tentaram se aproximar da casa até então.
Nossa despedida deveria ser curta. Olhei mais uma vez seus estreitos olhos orientais, agora opacos, que tanto me sorriram nos tempos de paz; toquei seu rosto e seu cabelo. Então, novamente retornando à realidade imediata, cortei parte de sua camiseta para enrolar e amarrar em minha perna, a fim de parar de perder tanto sangue. Ao tirar-lhe o coldre da cintura, fazendo seu corpo se mexer, pungiu-me outra vez o coração o fato de que seus movimentos autônomos cessaram para sempre. Não conseguindo mais permanecer ali, tanto pelo perigo quanto pela dor da perda imensa, com um grito furioso preso na garganta rastejei para fora da casa, pelos fundos.
Rodrigo estava ali perto, já apodrecendo; levara um tiro na cabeça quando tentava alcançar uma mochila de um soldado morto. Rodrigo arriscava demais. Eu gostava muito dele. Passando por seu corpo, tomei para mim mais alguma munição. Agora eu já possuía três pistolas e uma caixa cheia de cartuchos e balas que eu não fazia ideia se serviriam; não havia tempo para me deter averiguando a compatibilidade da munição, era preciso me esgueirar o mais rápido possível para longe da casa, pois já a invadiam, agora que Aline não mais os afastava com os tiros do rifle.

Era noite e ninguém me viu me arrastando em direção ao fundo da viela em que a porta de trás da casa dava.

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