segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Lovecraft

     O que mais atemoriza nas narrativas de Lovecraft não é o terror explícito. Claro que, com este, ele faz um excelente trabalho - de acelerar os batimentos cardíacos do mais valente dos homens -; mas, por detrás das sombras e da vilania dos seres repugnantes que descreve, há um terror muito mais profundo, sobre o qual ele nada diz, mas deixa suficientemente aparente para que os mais atentos o encontrem. De modo que não é somente o monstro do interior da pirâmide que me assombra, mas a ausência de um desfecho do ritual hediondo que o invocou. É o que não se narrou que infunde o verdadeiro terror misterioso de suas histórias. É a certeza de que algo ainda mais diabólico ronda os acontecimentos descritos e aguarda calmamente pela sua vez. E, além, algo ainda mais terrível.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Surge à lembrança

     Eu a observava de longe, a caminhar. Era um andar cheio de música. Música muda, que só soa - em acordes que inexistem além de concepções inexatas de uma mente apaixonada - quando evoco à memória seus passos. Sinto saudades.

     Sim, acompanhava-a com o olhar, às vezes. Ela soube, alguma vez? Não, sempre mantive silêncio sobre este hábito. Só agora o revelo.

     E minha vontade, que sempre fora sair aos brados, clamando por seu amor, e alçá-la à brisa leve das alturas de um rodopio, abraçando-a pelas pernas, precipitando-nos ao perigo do meio-fio da movimentada avenida, e receber, ao entregá-la de volta ao contato do solo, um sorriso estupefato de felicidade e amor, seguido de um beijo apaixonado enquanto apoiados de qualquer forma aparentemente desconfortável no poste ao lado da banca de jornal, ah!, feneceu, cansou-se de quase se concretizar por pouco.

     Mas, as memórias, as memórias! Cheias de música e cabelos ao vento. A chuva! A chuva fria na noite escura e deserta. E tudo por onde paramos e olhamos para algum lugar, pensando sobre o que falar, para onde ir.

     À minha volta, um mundo cheio de marcas. Por onde fez-se horizonte a seus olhos. Pelos lugares que nossas sombras tocaram. Pelos muros que ouviram nossas risadas.

     Um mundo cheio de marcas.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Avião

     Que lindo! O céu da noite, estrelado, permeado por algumas nuvens algodoadas, brilhava, cheio de breves halos dos pontos de luz. A noite era fresca, e o alto vento soprava os flocos de nuvem para sudoeste. Alguns, deitados na relva e fitando o céu, poderiam se perder por horas em devaneios...

     O globo girava... as nuvens passavam... a brisa toca... o pensamento flui.

     De repente, fatiando a abóbada celeste de uma ponta a outra, surge, por entre um bloco de nuvens - e delas puxando um pequeno rastro - um avião.

     - Que incrível é a imaginação. Posso fazer disso o que eu quiser. Se eu deixar a imaginação vagar, posso fazer de conta que esse avião se parece com... hm... com...

     O avião não se parece com nada. A ideia era que ele se parecesse, naquela oportunidade, aos olhos do observador, com uma águia, falcão, andorinha, pomba, qualquer ave. Mas... uma droga de um avião só se parece com outros aviões e mais nada. Nenhum animal fica voando e emitindo luzes coloridas das pontas das asas, nem fazendo uma barulheira infernal, e nem mantendo tão rígido o corpo. A urbanização destrói todas as fantasias. Só de pensar que não é só por aqui, no meio da cidade, que passam os aviões, já me apavoro. Por mais que eu procure os campos, corro o risco de ter interrompidos os meus sonhos pela turbulência de um avião. Máquina do homem. Serve para todos os propósitos práticos maravilhosamente bem, mas macula a paisagem e, doravante, o pensamento de quem aprecia um céu limpo de "progresso humano".