domingo, 30 de dezembro de 2012

No remoto deserto de Kaij


Há muito que já não mais distingo o tempo. O esforço é aflitivo e vão.
Caminho quase todos os dias através dos corredores e aleias e pelos níveis, vários, destas ruínas que um dia foram inexpugnável fortaleza, erigida por homens e deuses, quando nós caminhávamos lado a lado. Isso foi há mais tempo que pode a mente conceber, muito antes do ato que culminou nesta minha punição; apenas não sei se aqui estou há mais séculos que os transcorridos entre a fundação deste lugar e meu levante. As infinitudes de tempo se aproximaram desde que abandonei as medições.
Meus inimigos foram cruéis demais; mas eu castigaria com igual crueldade quem tramasse uma insurreição como a minha. Posso compreendê-los.
Quando me aventuro fora das ruínas, seres abomináveis se erguem das areias e surgem do horizonte do vasto deserto que circunda a fortaleza destruída. Desaparecem no ar assim que volto para dentro dos muros. Em certo momento, há mil vezes mil anos ou mais, enlouqueci e, a certa distância das muralhas, totalmente exposto, gritei desafios às odiosas criaturas, que não tardaram em emergir de suas submersas moradas em resposta à minha provocação. Enfrentei-os, então, por eras, armado de uma antiquíssima, mas poderosa, espada que havia encontrado perdida por entre os escombros, e com a qual achei que poderia destruí-los e escapar. Recordo-me que nela havia inscrições desgastadas à ilegibilidade correndo por toda a lâmina; certamente fora posse de vários heróis de outrora, hoje todos mortos e esquecidos. O sonho de escapar, contudo, já tinha sido previsto por meus opositores. Além de os seres jamais findarem, quanto mais me afastava das ruínas de Kaij, mais mortal me tornava e, portanto, mais necessidades e fraquezas mortais se me impunham. Antevi que ficaria cansado de lutar, sentiria sede e fome, calor e frio no clima adverso deste pedaço de mundo deixado ao oblívio, e pereceria.
Certamente outros prefeririam a morte ao eterno castigo; mas estes não são eu. Minha ira é demasiado grande para que eu desista da existência, e aumenta cada vez mais.
Nas entranhas desta construção abandonada há o verdadeiro lugar em que fui aprisionado, onde eu sou eu mesmo, imortal, indestrutível, terceiro em força entre todos. Trata-se não mais de Kaij, mas de um interstício entre as dimensões, o terrível Nada, em que todo meu poder, embora eu possa senti-lo fluindo pujante por todo meu ser, é estéril. Quando digo que meus inimigos foram cruéis, faço menção mais do que ao simples aprisionamento: refiro-me a terem interligado meu verdadeiro cárcere às profundezas desta construção esquecida e, principalmente, refiro-me ao artifício - criado por meu primo, cuja vida primeiramente ceifarei com imensurável prazer antes de todas as outras, quando eu conseguir me libertar - que mina meus poderes quanto mais me afasto da prisão entre dimensões. Quando ando por Kaij, sou livre, porém somente um homem; fortíssimo, mas um mero homem. Um excelente convite à loucura e ao ódio. Seria menos doloroso estar confinado eternamente apenas ao Nada. Mesmo assim, não sou capaz de não retornar às ruínas, pois aqui deve certamente haver um meio de escapar. Pagarão por este sarcástico capricho.
Vez ou outra vou ao torreão mais alto e observo os horizontes além do horizonte do deserto, graça atroz que me concederam meus inimigos. Vejo gerações de homens guerreando, conquistando, raramente gozando períodos de paz. Posso vê-los todos, nos diversos cantos do mundo, observar cada vida isoladamente ou a humanidade como um todo. Vejo também as interferências dos deuses e seus planos, e posso jurar que eles também podem me ver aqui, pois não é com pouca frequência que seus olhos encontram os meus, embora nunca tenham deixado transparecer quaisquer outras provas de que me observam - talvez com júbilo, ou pena, ou desprezo, ou indiferença; sei o que cada um deve sentir por mim, mas por todos sinto somente ódio.
Durante essa observação do mundo distante é que me apercebo de que o tempo flui além de meu discernimento. Aqui não há distinção entre noite e dia, ou talvez seja que ambos existam simultaneamente. Não há marcas no céu. Sua cor indecifrável é a mesma quando chove, quando o violento vento assovia por cada fresta entre as pedras dos maciços muros da fortaleza, quando o frio congela o tutano de meus ossos ou quando o calor evapora o líquido de meus olhos. Se volto para minha prisão quando o clima se faz torturante, o fluxo de tempo para em Kaij, apenas para aguardar meu retorno, a fim de que eu continue a sofrer como antes, de acordo com a vontade do clima e pela duração apropriada ao meu desespero.
Este lugar assombra o pensamento dos homens. Poucos se atreveram a chegar mesmo a quilômetros de distância daqui. Se eu ao menos pudesse atrair alguém para cá, eu poderia escapar, mesmo que na forma humana. Conheço o caminho para a morada dos deuses, esquecido pelos homens. Haveria uma chance de eu me libertar se liderasse um exército grande o bastante para ameaçar meu primo. Seria possível. Será.
Uma vez liberto, não falharei de novo; assassinarei todos os deuses e reconstruirei o mundo.

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O primeiro dia da longa e há muito esperada viagem finalmente chegou. Desde sua infância, o sonho de desbravar os Confins jamais perdeu a força. Obteve, a muito custo, documentos e mapas tidos como perdidos; duas vezes, inclusive, quase os pagou com a própria vida. Sua posse, ele a omitiu de todos até o momento de anunciar sua derradeira busca, para a qual arregimentou os mais fiéis e bravos amigos e guerreiros; mas apenas a seu filho, já um rapaz alto e robusto, segredou que ocultara documentos e mapas que há eras os sábios desistiram de procurar.
- Os homens temem os lugares destruídos pelas guerras lendárias e onde os deuses caminharam, filho. Eu, porém, sempre quis conhecê-los; sinto que pertenço mais às cidades antigas do que a todas as outras.
Com sua eloquência e carisma, havia conquistado já há algum tempo o favor dos intrépidos homens que agora o acompanhariam na longa jornada pelas áridas terras dos extremos do mundo conhecido, onde seres lendários e acontecimentos incríveis - alguns nem mais lembrados pelos contadores de história - supostamente existiram e aconteceram numa época distante no tempo.
Existe um sentimento sinistro, talvez causado pela extensa e desértica desolação que leva aos Confins, que sempre surge à mente dos homens nos limites do descampado de Nim, desencorajando-os e impedindo-os de seguir adiante. Talvez seja o temor de um poder ancestral e nocivo, talvez o simples receio de perecer no deserto. Para ele, entretanto, esse sentimento que a todos afasta é inócuo; pelo deserto sente só atração, como uma convocação à qual não pode declinar, e não apenas isso: seu maior desejo e ambição é conhecer aquela região do mundo olvida por todos. Aos poucos conseguira incutir em seus companheiros parte de seu entusiasmo, mais que o bastante para que rompessem com o naturalizado medo dos Confins e para que vencessem o angustioso sentimento que demarca a fronteira de Nim.
- Carreguemos os animais com os suprimentos - disse aos companheiros, apreciando o amarelado horizonte ao qual se dirigiriam. - Em uma hora, quero partir.

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