segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

De nossos trezentos últimos encontros


Há quase dez anos, havia um canal de televisão que transmitia clipes musicais e notícias sobre jogos de videogame, e eu passava um bom tempo assistindo a essa programação que tanto me agradava. Foi nesse canal que primeiramente ouvi uma música de Los Hermanos chamada "O Vento". Gostei da gravação feita para o clipe, com uma câmera comum, e da letra da música, que não entendi, embora tenha achado interessante; decorei-a parcialmente nas poucas vezes em que vi o clipe sem, no entanto, me esforçar para memorizá-la perfeitamente.
Algum tempo depois, ao acaso cantei tal música estando junto a alguns amigos e colegas que usavam um computador da biblioteca do colégio, numa tarde após o almoço, ou antes, não sei. Não me lembro por que estávamos lá até aquela hora, nem quais eram os outros colegas; recordo-me, somente, de uma nova amiga e de como ela ficou encantada com eu conhecer essa música. Pediu-me até mesmo que a cantasse de novo. Sei, devo ter errado vários versos, mas ela decerto nem percebeu; no mesmo dia, fui procurar a letra a fim de a decorar corretamente, pois eu a cantava misturando palavras e significados.
A partir desse dia, seguiram-se vários nos quais ela me pedia que a cantasse, e aos poucos juntava sua voz a minha, primeiramente cantando os trechos mais fáceis de se decorar, depois arriscando outros e, enfim, cantando-a inteira. Confesso que fiquei admirado com o quanto ela gostava dessa música... tanto quanto fiquei admirado, posteriormente, com a sorte de eu tê-la ouvido ao acaso e memorizado alguns de seus versos para depois cantá-la casualmente naquele dia da biblioteca.
Éramos dois adolescentes sorridentes e sentávamos sempre juntos durante as aulas, após começarmos a nos falar – apenas algum pouco tempo antes de eu ter cantado a música, creio. Não a amei logo de início; nasceu-me até certa antipatia por ela quando entrou no colégio no primeiro ano do Ensino Médio. Paulatinamente é que nos fomos conhecendo – trago reminiscências de borrachas pedidas emprestadas, grupos formados aleatoriamente pelos professores, algum encontro estranho e cumprimentos atrapalhados nas esquinas dos corredores. Ela era bem magrinha e um tanto desajeitada, e não foram poucas as ocasiões em que me peguei a observar seu andar também magrinho e desajeitado. Certa vez debrucei-me no parapeito da varanda do alto apartamento onde morava um amigo nosso, que visitamos naquele dia, e fiquei a observá-la enquanto subia a rua em direção a sua casa; ela estivera conosco no apartamento – provavelmente estudávamos para alguma prova ou resolvíamos alguma tarefa escolar –, mas precisou ir embora porque iria fazer um sanduíche para seu pai; decerto já o deixara passar fome por tempo demais naquela tarde, pois saiu apressada. Conforme ela subia a rua, trajando uniforme escolar, inclusive o blusão, sendo que não estava frio, eu encontrava um pouco daquela música em mim, como cada vez mais encontrei durante os anos vindos.
Talvez isso tenha sido no segundo ano do Ensino Médio; não tenho certeza. Pode ter sido no início do terceiro, também. No meu HD antigo – irei consertá-lo, algum dia –, possuo registros de conversas de MSN que possivelmente poderão me ajudar a reconstruir a cronologia de minhas memórias dela, mas, por ora, as lembranças do colégio estão soltas desordenadas em minha mente:
Aquela vez, quando vendemos clandestinamente bilhetes de rifa pelo condomínio daquele mesmo amigo em comum anteriormente mencionado. Já aí eu fazia alguns esforços para, sempre que possível, estar com ela; e esse foi mais um esforço que deu certo, pois nosso grupo de amigos se dividiu em duplas com o propósito de vender os bilhetes, e minha dupla foi ela. Morremos de rir – ela, principalmente – naquele dia com uma mulher japonesa incapaz de nos compreender, e de mim, arriscando conversar em inglês com a estrangeira. Descíamos pelas escadas de incêndio do prédio, sentando por algum tempo nos degraus a cada dois andares visitados para ou descansar, ou contar o dinheiro, ou meramente rir. Quando eu não sabia o que conversar, apenas a admirava. Seu sorriso e seu riso, seus olhos, seu cabelo. Aquela vez, quando fizemos um trabalho de Biologia juntos. Deveríamos recortar cromossomos e ordená-los; desentendemo-nos um pouco. Todas as vezes quando eu passava pelo pátio vermelho após comprar meu lanche, procurando-a sentada a um canto com uma ou duas ou nenhuma amiga, a fim de passar por ela desatentamente, como se nunca me lembrasse de seu costume de ficar por ali, no patamar da antiga cantina – ela não chegou a conhecê-la, se meus cálculos estão certos –; era então, na hora do intervalo, que geralmente eu a cumprimentava, e suas amigas, antes de começarmos a sempre nos sentar próximos na sala de aula. Lembro-me de ela pegando ônibus no ponto em frente ao colégio, e como jogou, certo dia, estabanadamente, o bilhete único pela janela para sua amiga, depois de passar pela catraca; dessa maneira, economizavam passagens. Certa vez, flagrou-me observando uma goteira na academia aonde acompanhávamos alguns amigos que lá praticavam musculação. Lembro-me também das primeiras tardes em que comecei a acompanhá-la até sua casa, e de quando me ensinou um atalho para eu voltar à minha sem ter de percorrer um caminho bem maior. Após algum tempo, não adiantava nem mesmo eu fingir, com todo meu talento teatral, que a deixaria ir sozinha; ela somente ria e puxava-me para continuarmos caminhando. Eu teria perdido a conta de quantas vezes, mesmo depois de terminarmos o colégio, percorremos essas ruas – se tivesse pensado em contar. Vez ou outra, comprávamos um coco numa banca de frutas hoje inexistente. Conhecíamos cada detalhe do itinerário. Eu passava apertado por entre o muro de uma casa e um canteiro de coroas-de-cristo; não passar seria como não cumprir um dogma da religião de nós dois. Adiante no trajeto, pulávamos amarelinha nas pedras dispostas irregularmente num recorte da calçada. A regra era que cada dia um deveria pular e o outro, atrapalhar. De quando em quando, contudo, pulávamos juntos. Comecei a tentar encontrá-la de manhã, antes da aula, andando pela avenida no horário em que ela geralmente desembarcava do ônibus. Obtive um punhado de sucessos, que valeram a pena por todas as ocasiões em que continuei o caminho sozinho, vagaroso, na esperança de ela me alcançar, estando atrasada. Passei a chegar no horário exato da primeira aula na maior parte dos dias desde então, por me dedicar a tal empresa. Aquela vez, algum tempo antes de uma festa junina, quando os alunos foram convocados a dançar e ela disse que só dançaria se fosse comigo. Mas eu havia me recusado a participar da dança. Algumas semanas depois, porém, uma das moças que se havia voluntariado para dançar estava sem dupla, e decidi ser seu novo par... foi um erro cujo amargor ainda sinto forte. Eu não deveria ter dançado com aquela moça, e sim com ela. Aquela vez, quando fomos ao Playcenter, separados do restante da turma num ônibus com pessoas de uma série diferente da nossa. Jogamos Super Trunfo quando ela se enfadou da paisagem. No parque, na fila do Barco Viking, num hiato entre conversas, fitei-a distraidamente, até que seus olhos apanharam os meus a observá-la, e sustentamos o olhar por um breve momento. Dei-me conta de que ela era alguém que marcou minha vida até então, e que marcava naquele instante, e que marcaria dali por diante, sempre.
Após nos formarmos, nossos encontros, obviamente, se tornaram menos frequentes, mas ainda eram inúmeros. O que compensava era durarem mais tempo: tardes e noites inteiras. Ficávamos conversando no portão de sua casa, ou, algumas visitas depois, sentados na muretinha do pequeno jardim do lado de dentro. Hoje não faço mais ideia de sobre o que tanto conversávamos. Sei que nossas despedidas levavam horas e diversos abraços de adeus. Foi numa dessas ocasiões que ela me escreveu uma mensagem num cartãozinho – aparentemente destacado de uma cartela de algum caderno; não me lembro – com desenho de flores, no qual já estava inscrito “Viva cada minuto como um momento inesquecível”. Observo-o agora mesmo. A princípio eu o levava na carteira, até começar a temer perdê-lo caso me roubassem; desde então ele fica ao lado do monitor de meu computador.
Aquela vez, quando deixei de ir a um evento de inauguração do site de minha turma de jornalismo. Ligou-me a quinze minutos de eu partir ao tal evento, chamando-me para sair. Embora eu estivesse um pouco zangado com ela, por algum motivo esquecido, troquei o evento, no qual me esperavam, por sua companhia. Fiz cara feia no começo da noite, mera pirraça, mas depois nos divertimos e conversamos até de madrugada, quando voltamos andando pela Avenida Nova até nossas casas. Houve diversas outras noites nessa avenida, antes e depois. Aquela vez, quando fomos ao Ibirapuera e andamos de bicicleta. Ela atropelou uma ciclista, e ambas riram juntas, caídas. Que mais poderia eu fazer além de rir com as duas? Nenhuma se machucou, aliás. Quando ela estudava na São Joaquim, eu a visitei em vários dias, e vez ou outra combinávamos de nos encontrar no Metrô e ir embora juntos, pois ela saía da aula no mesmo horário em que eu saía do trabalho. E antes de trabalhar na empresa na qual então eu trabalhava, trabalhei numa banca de jornal na Avenida Cantareira, e lá ela me visitou algumas noites. Chegava uma ou meia hora antes de eu fechar a banca, e íamos embora juntos. Comemos muitas bombas de chocolate na padaria em frente àquela banca. Aquela vez, quando a espreitei sair de casa em direção ao ponto de ônibus e furtivamente aproximei-me tencionando perguntar-lhe, como uma pessoa qualquer, “neste ponto passam ônibus para...” – pretendia dizer “Santana”, mas tive de parar e rir, também, quando ela me reconheceu e começou a rir de minha brincadeira.
Tenho a impressão de já ter contado minhas memórias sobre ela um milhão de vezes através dos anos e dos blogs. Durante todo esse tempo juntos, constantemente cantamos a música, confundimos sua letra, discutimos suas ambiguidades e a extensão de seus significados. De todas as minhas memórias, talvez seja a letra e a melodia dessa música que reterei, se viver tanto, ainda a oitenta anos daqui, mesmo após esquecer meu próprio nome.
Numa ocasião, não sei exatamente quando, eu lhe predisse que nos encontraríamos, durante o restante da vida, apenas cerca de trezentas vezes mais. Na hora, foi apenas uma brincadeira. Quis apenas demonstrar minha insatisfação com a baixa frequência com que nos víamos. Lembro-me de que ficou um pouco irritada com a leve provocação escondida na estimativa. A partir de então, passei a subtrair uma unidade do total a cada vez que nos encontrávamos, e ao final do dia eu lhe informava a quantidade de encontros restantes. Passado algum tempo, parei de me dedicar à contagem, por algum descuido; entretanto, sei que o número de encontros restantes era de cerca de duzentos e cinquenta, um pouco antes de ela se mudar.
Fiquei sabendo da proximidade da mudança, primeiramente, por meio de sua irmã, com quem me encontrei por acaso no ônibus e que deixou escapar que “já estava tudo nas malas”; à minha pergunta sobre de quais malas estávamos falando, respondeu “ah, ela ainda não falou nada a você, né?”. Respondi-lhe que não. Mais tarde, todavia, acabei-me lembrando de que ela me dissera, algumas semanas atrás, ter algo complicado a me contar, e que estava se preparando para a façanha.
Na vez seguinte em que nos vimos, depois desse encontro com sua irmã, solicitei que me revelasse o tal segredo, que sua irmã quase deixara escapar. Abatida, disse-me que se mudaria. Ora, ela já me havia adiantado, uns meses atrás, que seus pais pretendiam se mudar – provavelmente para Vila Mariana, se não me engano. Portanto, quando me disse que a mudança seria certa, não fiquei excessivamente preocupado, e menos ainda surpreso; apenas entristecido pelo fato de que não estaria mais tão próximo dela e de que não mais percorreríamos tanto quanto antes o mesmo caminho de sempre, pelos pontos tão conhecidos nossos, a árvore macabra, o jogo de amarelinha, a banca de frutas... mas ela me disse que a mudança era para outro estado.
Até hoje cambaleio do baque. O que sobreveio dessa notícia se instalou em minha memória também aos recortes. Lembro-me de nossos últimos dias, de como fomos nos reunir com alguns amigos a fim de que deles se despedisse. Lembro-me de quando faltavam um ou dois dias para ela partir, e de que passamos a tarde juntos, não sei se com mais alguém. Ao final, já à noite, disse-lhe adeus e fui-me embora. Passei meia hora de inquietude em casa para enfim telefonar-lhe dizendo estar voltando para dar-lhe outro abraço – estava angustiado, ainda sentia em mim seus braços me apertando quando nos despedimos, mas atormentava-me a impressão de que o abraço que dei e as palavras que pronunciei não foram o bastante. Corri o caminho de volta a sua casa, talvez com medo de ela se evaporar ou porque não era capaz de simplesmente caminhar, sabendo que só por mais algumas horas ela estaria por aqui. Eu deveria viver cada um daqueles poucos minutos que sobraram como momentos inesquecíveis...
Cheguei esbaforido; ela me recepcionou com um semblante diferente do que exibia antes. Parecia abatida e desolada. Sentamo-nos dentro do carro de seus pais, ouvimos algumas músicas, só não me lembro se chegamos a ouvir Los Hermanos. Conversamos até alguns amigos seus chegarem, de carro; as despedidas dela continuariam madrugada adentro. Embarcamos no carro de seus amigos. Deixaram-me em casa.
Então ela foi embora, como o vento.
Isso foi há alguns anos, três ou quatro, acho. Visitei-a duas vezes lá, e ela veio rever São Paulo um tanto de vezes, também. Estas visitas de hoje, contudo, não são suficientes nem para dizer que minha estimativa dos trezentos últimos encontros foi realista; pode-se hoje dizer, na verdade, que eu tenha sido otimista, ainda que lá atrás no tempo eu quisesse ter sido o mais soturno dos pessimistas.
E mesmo que nos vejamos nestas poucas ocasiões, mais somos a nostalgia daquele tempo, dele nos lembrando em nossos rostos quase idênticos aos dos anos passados. É, a diferença entre o que éramos e o que somos está justamente aqui: antes fazíamos e agora apenas lembramos.
Escrevo com certa resignação, mas aceitarei o primeiro passaporte que me oferecerem para uma vida num universo paralelo onde ela não se foi para longe. Mesmo hoje, sua passagem em minha vida amplamente me atinge, seja pelas reverberações do passado, seja pelos devaneios do presente.
Vejo seu cabelo esvoaçando em todos os lugares. Em meio às milhares de pessoas que passam por mim todos os dias, ainda me sobressalto, vez ou outra, quando minha mente caçoa de mim, fazendo-me acreditar que a vi em alguma passante – isso, entretanto, hoje ocorre com menos frequência, admito, que no período logo após sua partida, quando dezenas dela sorriam para mim pelas ruas do centro de São Paulo. Penso nela quando escrevo e quando leio. Pois ela é o vento, puro e simples, e também seu barulho no trigo, chave da memória. E porque ela é linda, porque ela é meiga e sobretudo porque ela é a menina com todas as flores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário