terça-feira, 20 de novembro de 2012

O temor de perder alguém no vasto mundo; depoimento à amada

Por um momento desesperei porque achei que jamais veria você de novo; fui depressa aos registros do MSN antigo para tentar encontrar seu nome inteiro (confesso, não me recordo) em algum lugar, mas o que tenho de melhor de você – daquela época quando a conheci e quando você me disse que se casaria comigo, que deveríamos nos esforçar para nos encontrarmos e superarmos as dificuldades para nos amarmos como naquele arroubo nos amamos; sim, eu amei você, amei por pouco tempo, mas amei demais, demais... –, o que tenho de melhor de você está no HD do computador antigo, que está travado e que só com a ajuda de algum profissional em recuperar HDs travados conseguirei resgatar; guardo-o na gaveta de minha cama e espero algum dia poder ver novamente nossas conversas maravilhosas que lá tenho salvas, nossos diálogos sobre literatura e amor e paixão e nossos flertes adolescentes que facilmente me evolavam ao fértil mundo do sonhar acordado. Então foi quando pela segunda vez em poucos minutos desesperei, porque não encontrei seu nome, pois o que tenho no computador atual são só nossos frágeis últimos pedaços. As condições de nosso encontro foram tão fortuitas e acho que não conseguiria reproduzi-las jamais; eu poderia ter perdido você para sempre! Ainda mais sem seu nome, sem saber se você ainda mora no agitado litoral, minha única alternativa para reencontrá-la seria viajar para a outra ponta do país e procurá-la em cada casa, tarefa que me exigiria uma vida inteira e que quase certamente não daria resultado...
Em meio a este segundo desespero, lembrei-me de quando conheci você, puxando assunto numa enfadonha conversa sobre cultura; você falava com todos sobre tudo e sempre estava impondo seu ponto de vista – algo aceitável, porque o que os outros diziam eram baboseiras sem sentido e você possuía o domínio argumentativo típico das pessoas que não necessariamente passaram a vida inteira estudando, mas das que nasceram banhadas pela facilidade de adquirir conhecimento –, e eu, quando me atentei aos seus dizeres ("vamos ver se esta moça aqui, que fala sem parar, de fato, fala algo interessante"), desisti de todas as outras conversas e ignorei todos os outros: só tinha olhos para você. Esperei pelo momento oportuno de tentar uma aproximação, especialmente procurando por um assunto que eu também dominasse, para que você não me estapeasse psicologicamente logo de cara como fazia com todos os outros; não me lembro bem como foi que comecei a papear, mas, se não me engano, foi aos poucos, e fazendo comentários sobre as pessoas com quem estivera conversando antes: "eu estava aqui pensando em como deve ter sido duro para você ter de conversar com Fulano; que pensamentos arcaicos ele expôs!" – coisas assim, o que era tão tipicamente meu modo de agir, pois eu, como um bom recém-adulto, só queria mesmo era demonstrar minha aparente segurança  em que eu, é claro, ingenuamente acreditava – em relação ao domínio precoce das artes e da filosofia, mostrar-me o jovem prodígio incompreendido da tormentória capital paulista; em você vi meu reflexo feminino, e pensei: "que belo!". Sabe, naquele dia, se bem que acho que já lhe falei isto, mas naquele dia eu tive uma de minhas maiores crises de tédio e não sabia mais o que fazer com os segundos que escoavam, chorando sua preciosidade; aquele dia foi o acme do aborrecimento fastidioso que viera se instaurando em mim não sei por qual motivo nem por quanto tempo – mas é provável que tenha se iniciado com alguma decepção amorosa, sentimento em mim tão recorrente –, eu não conseguia escrever sequer uma linha de minhas incríveis histórias, nem uma linha de qualquer delírio, não tinha vontade de ler livro algum, nem de sair com pessoa alguma, nem de dormir, nem de ficar acordado, e lembro-me de desejar que eu pudesse me desligar até que o momento do tédio passasse; mas então me apercebi de que o tédio era produto exclusivamente meu, o momento não estava no mundo exterior e, portanto, seria congelado e descongelado comigo e de nada adiantaria.
Querida, amada, conhecer você foi minha redenção naquele dia, e fez-me acreditar que o acaso, ainda que comumente um louco espalhafatoso com pendores destrutivos, às vezes nos agracia com uma aleatoriedade que nos serve de maneira maravilhosa.
Então aqui estava eu, revivendo aqueles dias em que fui feliz, eu juro, fui feliz de verdade, e agora até lacrimejei ao jurar, fui feliz de verdade com você, ainda que nosso contato fosse pouco e distante; então aqui estava eu, parafusando nos motivos que me levaram a querer me afastar de você, motivos tolos, imbecis – que eu poderia superar! –, num torpor de recordações de seu rosto e de seu corpo – também me apaixonei por suas pernas, e sempre que você se levantava para ir à cozinha tomar uma água, eu não podia evitar olhá-las –, quando sobressaiu-me à vista seu e-mail. Sempre me esqueço de que é possível encontrar as pessoas nas redes sociais virtuais também por essa maneira.
É um novo momento de desespero colocar seu e-mail na ferramenta de busca, o temor por não obter resultado sapando-me numa preparação para me derrubar; revê-la pareceu-me, nesse instante, improvável e apenas um sonho de um bobo; entretanto, reencontrei-a. Esta parte de mim que é você não está, ainda, perdida para sempre de volta ao caos do mundo.
Vejo agora seu rosto gentil com maquiagem escura – aparentemente caracterizando alguma personagem de alguma peça teatral em que você atuou em algum momento, decerto posterior ao nosso vago adeus, de sua vida repleta dessa felicidade de quem sabe que nasceu para encenar, ou simplesmente de quem sabe que nasceu para determinada aplicação, seja qual for –, mas que por trás da maquiagem é exatamente igual ao que eu quase esqueci por um descuido deste coração que definitivamente não sabe amar, pelo menos não como deveria, como a maioria das pessoas; por trás da maquiagem tenho certeza de que seu sorriso juvenil e sensual ainda começa pelo canto esquerdo da boca de lábios carnudos que então se estreitam graciosamente, sorriso convidativo como seu piscar de olhos... conjuntos, faziam-me delirar. Por muito tempo, não sou capaz de parar de ver sua foto do perfil; descobri num átimo que sentia saudade demais de você.
Você ainda escreve encantadoramente, como quando a conheci, ainda parece alheia à sobriedade do mundo, ainda mora no mesmo lugar, mas não sei se ainda estuda o mesmo curso na mesma faculdade, coisa que fiquei sabendo numa das últimas vezes que falei com você; mas quanto tempo isso faz?
Esta corrida era só para não a perder assim de vista, porque acho que não vou conseguir me reaproximar de você, é quase impossível que voltemos a nos falar, nas últimas vezes mal parecíamos qualquer coisa entre conhecidos, amigos, pessoas que algum dia estiveram apaixonadas uma pela outra...
Talvez tudo isto tenha valido apenas para eu fazer, enfim, a derradeira confissão de meu amor por você – naqueles dias de namorados, era sempre você, Deborah, quem primeiro dizia que me amava para, só depois, eu dar uma vaga resposta, que era sempre comedida; este meu medo de revelar que fui atingido por Eros privou-a durante todo este tempo de conhecer a íntima natureza de meu sentimento por você, que só agora deixo aflorar.
Deborah, eu (não posso dizer simplesmente que a amei, o verbo no pretérito, como se nosso envolvimento fosse um mero quadro de anos passados e saudosos, porquanto isso seria apenas uma mentira conveniente que me ajudaria a amenizar minha consternação por não estarmos mais juntos) amo você. Ao final, este lugar-comum.

domingo, 18 de novembro de 2012

Oculta num pronome


Algo que lamento é não poder, ou achar que não posso, nem dever, ou achar que não devo, talhar seu nome em cada declaração que a ela faço. Porque, se pudesse, não haveria de metamorfosear meu amor num outro, inexistente fora de meus pensamentos, para escrever fingidamente sobre um eu inexistente num mundo inexistente em que amo alguém inexistente - alguém este mero fantoche em que retrato seu rosto, tenro aos meus olhos, e certamente ao toque, que ainda desconheço.
Já é hábito meu amá-la como se estivesse me dirigindo a outra pessoa. Mesmo sendo hábito, é difícil escolher as palavras certas para criar as mentiras constantes que escrevo. E suspeito que, sendo inteligente como ela é, de nada tanto disfarce adianta; ela já me desvelou há anos.
A pior parte é a contenção. Ter de escrever tudo com meticuloso cuidado, deixando aqui e ali pistas para a verdade e para a mentira verossímil. Desta forma, engano-a um pouquinho. Até que, algum dia, eu lhe revele: "durante todo aquele tempo, tudo que escrevi e disse era só seu, e cada mulher que fiz de conta existir era apenas uma fantasia em você. Agora vou editar cada texto, cada página de cada caderno em que escrevi meu amor por você pronominalizada em qualquer uma; substituirei todos os pronomes por seu nome; cada lugar figurado por um lugar em que estivemos (e estivemos em tantos...); cada beijo que lhe quis dar pelo primeiro beijo que lhe darei; cada mentira pela verdade correspondente. E reescreverei todos os outros textos, tolos, que escrevera antes de conhecer você; colocarei seu nome em cada predição de que a encontraria, pois eu sabia que a encontraria e fatalmente a amaria, e também sempre foi certo que depois de a encontrar eu teria amado você desde o limiar de minha memória, desde quando uma moça entrou na mercearia de meu avô e me viu andando para lá e para cá e perguntou meu nome e minha idade e eu disse 'Felipe' e estiquei três e depois quatro dedos da mão direita - fizera aniversário havia pouco tempo e ainda não sabia direito se tinha três ou quatro anos -, e fiquei meio envergonhado; ah, quando eu conheci você, desde essa minha memória eu já a amava! Antes disso, não me lembro... mas decerto também já a amava!"
Quando eu fizer a ela tal revelação, estarei sendo, terei sido, sou, fora, serei um sujeito feliz, feliz.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Para uma menina com uma flor

"Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.
E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara- na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.
E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor."


Vinicius de Moraes

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Interstício


Deparo-me com o essencialmente branco painel de postagem deste blog, mas não me sinto totalmente apto a escrever, ou com assunto suficiente. Durante o dia, agora que voltei a escrever, de qualquer reflexão sobre alguma trivialidade nasce um texto em potencial para o blog. E era mais ou menos assim, antes... tirando que, nos últimos momentos, que eram o ápice, de meus dias verdadeiramente criativos do passado, comecei a converter toda essa reflexão cotidiana em adendos às histórias que tinha em andamento.
Bem, lá vai uma publicação no estilo de diário, então. Hoje não estou muito para meu habitual arremedo de filosofia. Estou é cansado para reflexões sobre meus dias; mais ainda para escrever bem.
Gosto de tomar um copão de água, gelada por dois cubos de gelo - as garrafas de água de colocar na geladeira, aqui, têm uma tampa que me parece soltar ferrugem ou algo do tipo, então prefiro não tomar delas -, à noite, antes de dormir, quando já estou pensando em desligar o computador. Acabei de tomá-lo, na verdade. De uma vez só, como sempre. Engraçado é que vou juntando os copos aqui na mesa do computador, mesmo; de repente estão cá todos os copos deste tamanho e sinto-me bagunceiro.
Dia destes estive me perguntando se as mulheres feias costumam ou não perdoar Vinicius. Terão de perdoá-lo até quando?
A reorganização de meus livros nas prateleiras de meu quarto ficou formidável.
Acho que não estou sabendo escrever este diário.
Lembrei-me de Marino, ele é quem costuma usar essa locução verbal: "não tô sabendo". Se é que bem me lembro de ele falando.
Certo mesmo era que eu não estivesse aqui escrevendo tró-ló-lós para o blog e sim estudando. Meus deveres para o feriado são: finalizar a transcrição de conversação e tecer comentário; refazer prova de Literários, graça concedida pelo professor para amenizar minha nota burlesca; estudar para prova de Clássicos, que negligenciei durante todo o semestre; começar trabalho de Literários, que farei com Paula, e por começar quero dizer ler os textos teóricos com atenção. Ando desfocado. Pelo que me conheço, passarei o feriado inteiro tendo a impressão de que o pouco que estarei fazendo é bastante e de que estarei me empenhando e, semana que vem, passarei apuros.
Não tenho ido com a frequência que gostaria ao caratê. É uma de minhas atividades diárias em que mais me aplico, mas mesmo assim... minha frequência é, muitas vezes, quebrada por meus motivos tolos.
Outro dia, talvez segunda ou terça, eu estava caminhando com uma amiga pela estação Luz. Não sei quem disse algo engraçado, e ela deu uma risada mais alta que seu normal, que já é alto. Para ser sincero, não me lembro mesmo de como tudo começou. Sei que, nesse momento, forcei uma gargalhada muito escandalosa; tal gargalhada saiu muito gostosa, e eu simplesmente não conseguia mais parar de rir gritando maniacamente, e ela - talvez por necessidade, talvez por emulação ou meramente por simpatia - deu-se a gargalhar igualmente. Durante alguns segundos inteiros e longos eu retomava o ar para rir bem alto de novo. Senti-me muito feliz naqueles momentos... como se eu estivesse rindo pelo tanto que não ri nos últimos tempos, como se eu estivesse tentando me compensar pela taciturnidade em que me encontrava.
O professor de Clássicos chamou-me de maluco - sem saber. Disse que só um ou outro doido entrava para a Letras com intenção primeira de estudar e fazer habilitação em Grego ou Latim; segundo ele, geralmente quem faz tais cursos ou faz porque não conseguiu vaga na habilitação pretendida ou porque começou a gostar dos estudos clássicos durante o primeiro ano do curso. Vir de fora, entretanto, como eu, tencionando estudar Letras Clássicas, para ele, é raridade ou mera maluquice. Vejam só. Mas gosto dele, ainda assim.
Neste momento, meus pensamentos estão se desviando para uma pessoa em especial. Prefiro encerrar esta postagem estranha por aqui mesmo, antes que se torne mais um fútil enaltecimento do amor - que é, inevitavelmente, o que virá em alguns dias.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Parafuso e metal no passado e no presente e nunca mais


Ouvi um barulho metálico, breve e leve, entre os passos de usuários. Virei-me para olhar o chão e devolver algum objeto a alguém que o estivesse procurando; não havia nada visível, entretanto. Desinteressei-me e voltei a atenção para as catracas estalando freneticamente com um grande grupo de pessoas a girá-las; pessoas que vêm em ondas.
Passados alguns minutos, lembrei-me do objeto metálico caído, e resolvi procurá-lo, por motivo nenhum. Andando de maneira a varrer o chão com a incidência da luminosidade em busca de algum reflexo, gastei cerca de metade de um devaneio até que rebrilhou em prata um pequeno pedaço de piso: era meu metal, e a seu encontro fui, indolente, como se estivesse tão à toa trabalhando como num momento qualquer.
Era uma insignificante pecinha em formato de meia lua com um encaixe quebrado numa das pontas. O tesouro era esse. Alguém me chamou para perguntar alguma coisa; permaneci segurando a pecinha durante certo tempo e, quando ninguém estava olhando, chutei-a para um canto escuro ali próximo e voltei a atenção, outra vez, para as catracas.
Algo me perturbava a memória, alguma reminiscência que não encontrava a porta para a consciência. Olhei para o lado, para onde o metal fora depois de tê-lo chutado. Distinguia-o numa parte do piso mais escura - de sujeira grudando em sujeira por sabe-se lá quanto tempo. A memória, então, veio à superfície: lembrei-me de um parafuso pelo qual me interessei, certa vez, quando visitei o acesso bloqueado ao terraço do prédio de 13, 14, 15, 16, não sei quantos andares, onde trabalhei, no Centro de São Paulo. Naquele dia, após sair correndo daquele último andar - que era o do terraço bloqueado - vi um parafuso jogado nas escadas de incêndio (por onde eu subira até o bloqueio) e, por algum motivo que não consigo atinar, em meio à fuga, peguei-o. Quando já estava no 10º andar, ou em algum próximo, joguei o parafuso pela escada abaixo e, como vi aonde tinha ido parar, chutei-o pelo lance de escadas seguinte abaixo; assim repeti a ação por alguns andares, todos os outros 9, 15, 20 que me faltavam descer naquela hora de delírio.
Enquanto me lembrava disso, ia me aproximando do metal no piso da estação; sabia qual seria o resultado de meus próximos movimentos conforme me lembrava do parafuso. Seus destinos eram idênticos. Não havia força que me pudesse conter, nem mesmo a da razão. Chutei o metal mais para o canto sombrio.
O parafuso saltitava os degraus em direção a um lugar que não era o seu (mas eu sabia de onde ele havia saído? Não. Qual seria seu verdadeiro lugar, então?), cada vez mais deslocado de seu mundo e do lugar onde, primeiramente, estivera aparafusado - e foi importante que tivesse estado lá algum dia, dia este que se perdeu em todas as memórias. Enquanto isso, o metal corria pelo chão, longe de sua bolsa, de sua fivela, seja lá de onde fosse; longe de algum lugar em que foi importante que estivesse.
Mais para baixo. Mais para o canto. Ninguém os salvaria. Já estavam no 1º andar e onde as paredes se encontravam. No prédio, havia os sacos de lixo (nas escadas de incêndio, algo que sempre critiquei, porém sem resultado); no canto, um ralo e um buraco sem propósito no chão.
Vocês já sabem o que fiz, não sabem? Sim, fui cruel: afastei-os, sem possibilidade de retorno, do mundo que conheciam. O parafuso talvez tenha sido separado do lixo de plásticos e papelões em que o joguei; se o fora, provavelmente em seguida foi dispensado em algum canto do mundo ou levado a outro lixo. Mas, provavelmente, não. O metal, joguei-o pelo buraco, e não tenho a menor ideia de aonde tal buraco leva; mas sei que, provavelmente, vai ficar no lugar em que está até que as ruínas de Luz sejam examinadas por outra civilização - ou não.
Quando escrevi sobre o acesso bloqueado ao terraço, comecei a escrever sobre o parafuso também; mas eu ainda estava assombrado pelos fantasmas do prédio e não pude continuar. Acho que eu estava precisando, depois destes anos, de despedir-me daquele parafuso. Faço disto uma despedida do metal, também; assim posso esquecê-los.

domingo, 11 de novembro de 2012

Qual utopia?


O comunismo não é utopia. Utopia é acreditar na eficiência do capitalismo e que, se deixarmos que continue existindo, este é um sistema ideal para a felicidade de todos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

"O trabalho enobrece o homem"


Desacredito que o trabalho - da maneira como é hoje, intenso, ocupador de boa parte da vida - seja essencial para o homem, como um amigo meu certa vez disse. "O trabalho enobrece o homem", como dizem alguns; talvez os mesmos que tanto se aplicam em instilar ignorância nas pessoas para seus intentos mesquinhos...
Principalmente, desacredito na necessidade do trabalho para a manutenção das ciências e das artes. Explico. Disseram-me, certa vez, que, se o homem não trabalhasse tanto, se não se exaurisse numa árdua tarefa cotidiana, não teria incentivos para devanear com "coisas melhores". Somente desta forma, por exemplo, as grandes mentes artísticas continuariam surgindo: da necessidade de fuga de tal realidade. Se não precisássemos trabalhar tanto, o tédio tomaria conta dos homens e, cedo ou tarde, ruiríamos intelectualmente, abandonando as ciências e as artes todas, cedendo à preguiça e - isto não disseram, mas gosto de criar perspectivas exageradas e lúgubres -, por fim, nos entregando ao ocaso.
Entregarmo-nos ao tédio? Já não é o tédio, às escondidas, o que vivemos? Ou a agitação do mundo do século XXI não é mero tédio preenchido com futilidades? Damo-nos a inúmeras atividades tolas que preenchem o que resta de nossa vida que já não está ocupado pelo trabalho - e os estudos, hoje voltados quase totalmente para um futuro de trabalho, parecem-me, em grande parte, somente uma face deste. O que há para ser escrito ou pintado sobre o mundo de hoje? Todas as coisas, ainda, mas numa perspectiva de fugacidade de cada instante que nos parecia precioso antes de nos escapar... e nos escapa porque é mais proveitoso irmos às compras.
Já vivo naufragado no tédio. Recolho parcelas de felicidade durante meus dias em uma ou outra atividade que me agradam verdadeiramente; as outras coisas são só o tédio, rondando, espreitando, esperando por se fazer notar bem de leve, como o bater monótono de corações desmotivados e os cliques de catracas girando.
De que maneira o trabalho, como ele é hoje, eleva a alma, a enobrece, então? A uma arte triste, que contempla, melancólica, perspectivas aparentemente inatingíveis de conforto físico e mental e da opção de preencher o tempo livre com uma vida de verdade?
E tudo que gostaríamos de fazer, mas nunca faremos porque não temos tempo, e quando o temos, apenas o vemos passar?
E, mudando de assunto, hoje caiu na prova uma questão sobre digressão.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Mera despedida


Sentirei saudade da Aline porque, em diversos aspectos, ela tem um espírito semelhante ao meu.

sábado, 3 de novembro de 2012

Algumas explicações sobre ateísmo


Aos muitos amigos e colegas de meu Facebook que compartilham uma imagem que diz:
"Ateísmo: a crença de que não existia nada e nada aconteceu a nada e então nada magicamente explodiu por razão nenhuma criando tudo e então um punhado de nada se rearranjou por si só sem absolutamente qualquer razão em partes auto-replicantes as quais se tornaram dinossauros. Faz todo sentido."
Tenho alguns comentários a fazer para conversarmos melhor.
Primeiro: ateísmo não é crença; é ausência de crença. A quem acha que ateísmo é religião: não é, e não insista, a menos que queira passar por tolo; e se assim for, não há mais motivo para dialogar, porque seria o mesmo que dialogar com uma pedra. Ateísmo é não acreditar em deuses de qualquer religião, assim como em qualquer entidade divina e similares.
Segundo: ante o inexplicável, geralmente a pessoa escolhe uma das seguintes opções: 1ª - acreditar que há um ser ou forças conscientes por trás do incompreensível e 2ª - concluir que há aspectos da natureza que, sim, não podemos compreender com as ferramentas que temos e talvez nunca compreendamos, mas que isso não implica em haver um deus articulando tudo. A primeira escolha é feita pelos teístas; a segunda, pelos ateístas. Simplesmente isso.
Terceiro: ser ateu não implica acreditar em Big Bang nem em qualquer outra coisa. Ateísmo, novamente, é simplesmente ausência de crença em deuses. Dar crédito à teoria científica X ou Y para o início do universo ou da vida ou o que for é outra coisa. O que acontece é que a teoria do Big Bang é a mais aceita entre os ateus. E é, sim, tão igualmente incompleta e vaga quanto a explicação teísta para a origem de tudo. Só não possui seres fantásticos desejando e criando para lá e para cá.
Quarto: faz igualmente todo sentido acreditar no teísmo, não faz? A crença de que não existia nada, então um ser incrivelmente poderoso magicamente fez tudo existir motivado por criar seres humanos num planeta minúsculo num universo infinitas vezes maior que tal planeta, e então ficar observando como esses humanos vivem e selecionar alguns para viver em seu paraíso, mas só alguns: aqueles que tiverem um medo absurdo e inexplicável deste ser. Não... não faz sentido. Aliás, gozado, qualquer outra pessoa que levar uma vida fazendo o bem e ajudando os outros, qualquer pessoa que dedique a própria vida para salvar a vida de outras, se não acreditar nesse ser supremo, está destinado à punição eterna. De que esses deuses gostam, afinal? De puxa-sacos, parece. Observação: quem diz que esse tipo de pessoa, mesmo não acreditando em Deus, "tem Deus no coração e acredita sem saber, por isso está salvo", ah, por favor, vá tentar sua manipulação religiosa em outro lugar.
Quinto: algo curioso é que não há consenso entre os religiosos. Cada religião tem um deus que fez isso ou aquilo de forma diferente, e cada uma acha que é a verdadeira religião porque tem os milagres tais e quais, ou os personagens místicos Fulano e Sicrano... também há os que dizem que acreditam em Deus, mas não em religião. Que tipo de "salvação divina" essas pessoas podem esperar? O deus de qual religião vai salvar essas pessoas?
Sexto: por que é necessário que o mundo faça algum sentido ou que tenha alguma finalidade? Para mim, essa necessidade é só uma forma de fazer de conta que somos importantes de alguma forma, ou mais importantes do que os outros animais, ou ainda pior: que um humano possa ser mais importante do que outro porque acreditam que ele tem uma "missão" ou algo do tipo. Isso é só mais uma forma perniciosa de separar as pessoas.
Sétimo: todos os comentários anteriores novamente e reforçados.
Antigamente eu dizia que acreditava em Deus e que era católico só para não ficarem olhando torto para mim, e achava que era importante "ter uma religião" (a mais popular, é claro) só para não perder prestígio social. No final da adolescência dei-me conta de que não estava errado por ser ateu e não menti mais. Algumas pessoas (poucas, admito) se afastaram de mim quando souberam que sou ateu. Engraçado: nunca me afastei de nenhum religioso simplesmente pelo motivo de a pessoa ser religiosa. Religiões têm os mais intumescidos preconceitos.
Quem não souber debater e quiser só destilar ódio nascido da ignorância que fique à vontade para me desejar o inferno, ou o lugar de punição que seja. Isso é até comum. Mas, aí, não mais tentarei dialogar com quem utilizar esses vitupérios.
Acho que era só isso, mesmo. Estava cansado de ver, sem nada dizer, esse tipo de mensagem estúpida circulando.

Dinheiro, dinheiro, dinheiro!


"Nossa, meu, você é muito engraçado/criativo. Por que diabos você não vai ganhar dinheiro com isso, porra?"
Não, posso simplesmente ser engraçado/criativo. Que necessidade de ganhar dinheiro com tudo, até se peidar de um jeito diferente o cara tem de tentar ganhar dinheiro com isso.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

As incertezas sobre os destinos das cartas


Não sei se minha carta jamais chegou, ou se ela não a respondeu, ou se respondeu e sua resposta nunca me foi entregue. Se nunca me respondeu, fico a refletir em que errei. O que parece é que nosso contato quebrou-se por conta de um desses problemas.
Só o que sei com certeza é que sinto saudade de suas palavras...