segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Parafuso e metal no passado e no presente e nunca mais


Ouvi um barulho metálico, breve e leve, entre os passos de usuários. Virei-me para olhar o chão e devolver algum objeto a alguém que o estivesse procurando; não havia nada visível, entretanto. Desinteressei-me e voltei a atenção para as catracas estalando freneticamente com um grande grupo de pessoas a girá-las; pessoas que vêm em ondas.
Passados alguns minutos, lembrei-me do objeto metálico caído, e resolvi procurá-lo, por motivo nenhum. Andando de maneira a varrer o chão com a incidência da luminosidade em busca de algum reflexo, gastei cerca de metade de um devaneio até que rebrilhou em prata um pequeno pedaço de piso: era meu metal, e a seu encontro fui, indolente, como se estivesse tão à toa trabalhando como num momento qualquer.
Era uma insignificante pecinha em formato de meia lua com um encaixe quebrado numa das pontas. O tesouro era esse. Alguém me chamou para perguntar alguma coisa; permaneci segurando a pecinha durante certo tempo e, quando ninguém estava olhando, chutei-a para um canto escuro ali próximo e voltei a atenção, outra vez, para as catracas.
Algo me perturbava a memória, alguma reminiscência que não encontrava a porta para a consciência. Olhei para o lado, para onde o metal fora depois de tê-lo chutado. Distinguia-o numa parte do piso mais escura - de sujeira grudando em sujeira por sabe-se lá quanto tempo. A memória, então, veio à superfície: lembrei-me de um parafuso pelo qual me interessei, certa vez, quando visitei o acesso bloqueado ao terraço do prédio de 13, 14, 15, 16, não sei quantos andares, onde trabalhei, no Centro de São Paulo. Naquele dia, após sair correndo daquele último andar - que era o do terraço bloqueado - vi um parafuso jogado nas escadas de incêndio (por onde eu subira até o bloqueio) e, por algum motivo que não consigo atinar, em meio à fuga, peguei-o. Quando já estava no 10º andar, ou em algum próximo, joguei o parafuso pela escada abaixo e, como vi aonde tinha ido parar, chutei-o pelo lance de escadas seguinte abaixo; assim repeti a ação por alguns andares, todos os outros 9, 15, 20 que me faltavam descer naquela hora de delírio.
Enquanto me lembrava disso, ia me aproximando do metal no piso da estação; sabia qual seria o resultado de meus próximos movimentos conforme me lembrava do parafuso. Seus destinos eram idênticos. Não havia força que me pudesse conter, nem mesmo a da razão. Chutei o metal mais para o canto sombrio.
O parafuso saltitava os degraus em direção a um lugar que não era o seu (mas eu sabia de onde ele havia saído? Não. Qual seria seu verdadeiro lugar, então?), cada vez mais deslocado de seu mundo e do lugar onde, primeiramente, estivera aparafusado - e foi importante que tivesse estado lá algum dia, dia este que se perdeu em todas as memórias. Enquanto isso, o metal corria pelo chão, longe de sua bolsa, de sua fivela, seja lá de onde fosse; longe de algum lugar em que foi importante que estivesse.
Mais para baixo. Mais para o canto. Ninguém os salvaria. Já estavam no 1º andar e onde as paredes se encontravam. No prédio, havia os sacos de lixo (nas escadas de incêndio, algo que sempre critiquei, porém sem resultado); no canto, um ralo e um buraco sem propósito no chão.
Vocês já sabem o que fiz, não sabem? Sim, fui cruel: afastei-os, sem possibilidade de retorno, do mundo que conheciam. O parafuso talvez tenha sido separado do lixo de plásticos e papelões em que o joguei; se o fora, provavelmente em seguida foi dispensado em algum canto do mundo ou levado a outro lixo. Mas, provavelmente, não. O metal, joguei-o pelo buraco, e não tenho a menor ideia de aonde tal buraco leva; mas sei que, provavelmente, vai ficar no lugar em que está até que as ruínas de Luz sejam examinadas por outra civilização - ou não.
Quando escrevi sobre o acesso bloqueado ao terraço, comecei a escrever sobre o parafuso também; mas eu ainda estava assombrado pelos fantasmas do prédio e não pude continuar. Acho que eu estava precisando, depois destes anos, de despedir-me daquele parafuso. Faço disto uma despedida do metal, também; assim posso esquecê-los.

Um comentário:

  1. "Quando escrevi sobre o acesso bloqueado ao terraço, comecei a escrever sobre o parafuso também; mas eu ainda estava assombrado pelos fantasmas do prédio e não pude continuar." =)

    ResponderExcluir