sábado, 25 de março de 2017

Tudo volta ao ponto em que a vida e a memória se anulam

Sentado outra vez atrás da mesa de negociações, José não vê mais a hora antes do almoço de minuto em minuto; não tem mais importância. Nem muito mais o que o cliente lhe diz, ou quem o empurra quando está parado no meio de tanta gente passando. Ele lembra de coisas vagas, de memórias de dias atrás que já parecem cenas de filmes antigos em VHS, chuviscadas, o som distante. Estava entrando numa cozinha de teto baixo numa casa pequena, alguém lavando louça enquanto ele varria o chão. Agora ele estava chegando numa construção antiga, para esperar algumas horas antes do fim do expediente daqueles funcionários, com quem fez alguma amizade por conta de uma das pessoas que trabalhava lá. Agora já era madrugada e eles passeavam com certa apreensão entre prédios do campus, parando com alguma frequência para olhar as árvores. Agora eles estavam subindo numa árvore. Agora tudo brilhava na cidade litorânea à noite, do ponto mais alto da roda-gigante. E o mar aquela noite estava tão calmo quanto seus corações e seus olhares, como na vez em que viram as nuvens passarem detrás do relógio imenso, como quando se encontravam de manhã, sonolentos, antes das aulas...

José não existe mais.

Por que eu gastaria meu tempo explicando?

Sexta-feira
Dia em que todos vão estar ocupadíssimos
E você que ficou em casa fica sem nem saber se está sendo ignorado porque a pessoa nem quer saber de você ou se porque não existe nem tempo para olhar para o celular (onde estamos sempre olhando) para saber se você está vivo ou não
Até pouco tempo atrás era questão primária você chegar em casa às 23h15 da sexta-feira, pois você estava bêbado como há muito não ficava. Mas agora não é tão importante assim saber disso...
Você só está em casa sozinho enquanto todos estão em qualquer lugar extremamente satisfatório, onde cada um se sente bem, cada um encontra um lugarzinho que lhe dá algo de pouco ou de muito para sobreviver mais um dia, e na verdade todos vocês estão certos, é difícil, e sobreviver só mais um dia, só mais um pouquinho, é muitas vezes questão vital.

Mas quando você está na sua casa e não existe nada além desta página em branco para escrever, nenhum movimento em sua direção, nenhum dispêndio de energia a seu favor enquanto há um mundo de mini-alegrias ali fora, dentro da sexta-feira; enfim, neste exato momento, existe um gatilho de morte tão pequeno e tão infinito na sua mente que agora sim você entende como um buraco negro pode conter tanta matéria num ponto tão minúsculo. Agora sim você entende aquele momento tão breve em que as dores nascem já como uma árvore antiga e deformada, é apenas um segundo de vida e já algo tão horrível que se mostra... e as raízes já estão em todo lugar, não há mais o que fazer...

Nesta sexta-feira em que o mundo está tão ocupado, você perde um pouquinho mais disso que chamam de vida e ninguém vê, mas depois todos te perguntam "ué, Felipe, quando foi que você ficou assim tão triste?"

E eu queria responder "naquela sexta-feira em que eu tinha tanta dor e tanto a dizer mas todos tinham tanta alegria e tanta coisa a fazer que eram como dois universos, eu e os outros, e não há mesmo nada a explicar, as coisas pertencem a mundos diferentes. É como ter que explicar desde o princípio o que são coisas como o ar, a terra, o tato, a visão, coisas tão óbvias que não tem nem como saber por onde começar... Por que eu gastaria meu tempo explicando?"

quinta-feira, 23 de março de 2017

Quando ela me beijou pela primeira vez

Quando ela me beijou pela primeira vez, eu já sabia que ela amava mais de uma pessoa... eu já sabia que ela beijaria cem bocas... eu já sabia, mas a maré do mar da minha abstração interior ainda era baixa; eu não tinha nada, só o germe das dores que eu cultivei e espalhei, mas ela, ela já tinha um pé em outro mundo... e aquele brilho que eu achei que era do poste refletido nos olhos dela era, na verdade, o sol que só ela conhecia, brilhando no futuro... eu ainda não conhecia o café que eu iria lhe preparar em inúmeras manhãs, nem a musiquinha que ela cantava com voz tão linda no chuveiro, nem a palminha que ela bate quando está toda feliz e rodopios... eu não tinha nada, e ela tinha tanto... e eu ainda não sabia o gosto que as lágrimas dela teriam... e às vezes me dói tanto quando eu não sinto que na verdade ainda há tempo e tudo e tanto e vida e sorriso... e um abraço apertado apertado apertado, quente e forte, que carrega qualquer muro...

quarta-feira, 22 de março de 2017

Outra vez, mas você é meu alguém

Você indo, eu voltando... através da plataforma, te vejo no outro trem, um instante antes de sumir da vista no movimento que te leva embora. E eu não sei se você me viu ou não. Queria tanto que tivesse me visto...

O trem que me leva pra longe de você é cruel. Poderia descer na estação seguinte, mas sei que nunca vou te alcançar, e sempre chegarei tarde demais para saber em qual estação voce desceu.

De que me adianta olhar para todos os trens à sua procura, agora? Seria como te procurar olhando para a multidão que passa na frente do Teatro Municipal, ou na 25 de Março no dia das mães. Improvável te rever. E insano; pode ser que no momento em que eu descansar os olhos você passe e eu não veja. É melhor não fazer nada disso e contar com a sorte de novo...

Mesmo assim agora eu sempre observo as pessoas no trem oposto.

Solo

Descaracterizado, estou onde se veste de preto e se grita pra rasgar a garganta. Aqui se fala do abstrato, mas o que eu tenho são as botas do trabalho no pé e três vidas de dor no coração. A conversa daqui é igual a de acadêmicos: elitista, prestigista, velha e saudosista, presunçosa. Discurso conservador em roupa rebelde. Gente que poderia ser jovem no início do século retrasado, e nem lá direito.

Escrever deixou de ser útil. Mas é só o que eu sei fazer. E agora? Não há mais tempo para aprender, e mesmo que houvesse, não se aprende a desenhar do dia pra noite, que era o que eu precisava. Talvez se eu desenhasse ou fizesse música seria mais fácil me expressar, mas escrever não me serve mais. Até isto aqui está sendo ridiculamente difícil. Escrever é minha expressão mais antiga e conservadora.

Um manto de dor

- Eu não consigo.

Ela falou alto mas sozinha com uma expressão de quem já morreu mil vezes, então se levantou devagar, sem mais nenhuma palavra. Ninguém ousaria tocá-la para confortar, dizer-lhe algo para raciocinar, colocar-se de frente a ela para impedir seus passos, que todos sabiam ser os últimos. Ela caminhou devagar, mas firme, repelindo todos apenas com a dor que emanava, e saiu.

Acho que fui o último a olhar em seus olhos. O que vi me impediu de tomar qualquer atitude para salvá-la, pois não havia nada lá para ser salvo, e talvez eu próprio me perdesse naquele vazio.

Entretanto, eu a conheci; e como alguns ali, mais que a maioria, eu sabia que havia algo lá... havia algo lá naqueles olhos que era fogo e não vazio, algo que nada poderia destruir... então, o que estava acontecendo? Ela caminhava sob um céu enjoado que não chovia nem abria, se afastando, e não houve quem tivesse força e ímpeto de trazê-la de volta. Nunca mais a vimos, e acho que ela continuou caminhando até morrer em pé em algum lugar onde ninguém a conhecia e nem nos mandaria notícia. Ou quem sabe até hoje ela caminha, cada vez mais distante...

O que aconteceu? Penso que talvez foi o mundo, pesado demais em suas costas, mas não entendo... só o que dela me restou foi essa imagem terrível de seus últimos momentos, tão forte que mal me recordo se algum dia de fato vi seu sorriso.

Parece-me inclusive que tudo está mais cinzento, como se o que ela carregasse tivesse caído sobre todos nós, como um manto, e agora o mundo e todas as coisas seguem de fato para o fim...

domingo, 5 de março de 2017

Uma menina me ensinou
Quase tudo que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei

Ela fazia muitos planos
Eu só queria estar ali
Sempre ao lado dela
Eu não tinha aonde ir

Mas egoísta que eu sou
Me esqueci de ajudar
A ela como ela me ajudou
E não quis me separar

Ela também estava perdida
E por isso se agarrava a mim também
E eu me agarrava a ela
Porque eu não tinha mais ninguém

E eu dizia ainda é cedo
Cedo, cedo, cedo, cedo
E eu dizia ainda é cedo
Cedo, cedo, cedo, cedo
Ah, eu dizia ainda é cedo
Cedo, cedo, cedo, cedo
Ah, eu dizia ainda é cedo

Sei que ela terminou
O que eu não comecei
E o que ela descobriu
Eu aprendi também, eu sei

Ela falou: Você tem medo
Aí eu disse: Quem tem medo é você
Falamos o que não devia
Nunca ser dito por ninguém

Ela me disse: Eu não sei
Mais o que eu sinto por você
Vamos dar um tempo
Um dia a gente se vê

E eu dizia ainda é cedo
Cedo, cedo, cedo, cedo
E eu dizia ainda é cedo
Cedo, cedo, cedo, cedo
Ah, eu dizia ainda é cedo
Cedo, cedo, cedo, cedo
Ah, eu dizia ainda é cedo.