quarta-feira, 22 de março de 2017

Um manto de dor

- Eu não consigo.

Ela falou alto mas sozinha com uma expressão de quem já morreu mil vezes, então se levantou devagar, sem mais nenhuma palavra. Ninguém ousaria tocá-la para confortar, dizer-lhe algo para raciocinar, colocar-se de frente a ela para impedir seus passos, que todos sabiam ser os últimos. Ela caminhou devagar, mas firme, repelindo todos apenas com a dor que emanava, e saiu.

Acho que fui o último a olhar em seus olhos. O que vi me impediu de tomar qualquer atitude para salvá-la, pois não havia nada lá para ser salvo, e talvez eu próprio me perdesse naquele vazio.

Entretanto, eu a conheci; e como alguns ali, mais que a maioria, eu sabia que havia algo lá... havia algo lá naqueles olhos que era fogo e não vazio, algo que nada poderia destruir... então, o que estava acontecendo? Ela caminhava sob um céu enjoado que não chovia nem abria, se afastando, e não houve quem tivesse força e ímpeto de trazê-la de volta. Nunca mais a vimos, e acho que ela continuou caminhando até morrer em pé em algum lugar onde ninguém a conhecia e nem nos mandaria notícia. Ou quem sabe até hoje ela caminha, cada vez mais distante...

O que aconteceu? Penso que talvez foi o mundo, pesado demais em suas costas, mas não entendo... só o que dela me restou foi essa imagem terrível de seus últimos momentos, tão forte que mal me recordo se algum dia de fato vi seu sorriso.

Parece-me inclusive que tudo está mais cinzento, como se o que ela carregasse tivesse caído sobre todos nós, como um manto, e agora o mundo e todas as coisas seguem de fato para o fim...

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