quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O ausente


"...aqui foi no sábado. Eles trouxeram já as fitas e logo o Alcides vai descer comigo para colocar. Felipe, espera aí, queria ver com você uma coisa aqui... deixa eu entrar com minha senha. Quer ver, tava na parte de demonstrativos."
Um minuto.
"Sua matrícula, mesmo? Ah, sim, está aqui. Beleza, deixa comigo."
"E aí, Felipe? Nem tinha te visto, hoje. Vou te falar, hoje tá complicado. Ah, uma senhora que estava lá na área aberta..."
Dois minutos.
"...disse que não te via faz tempo. Te chamou de loirinho, demorei pra entender. Sabe que ontem à noite teve uma zoeira aqui, dos arruaceiros, e deu que..."
Três minutos. Sempre nesse ritmo.
Quatro minutos, e cinco, e mais, e a soma chega a quinze. Eu os vejo passar no relógio da barra da tela do computador. Acerto com baixa margem de erro o momento em que os números mudam. Entreouço o que me dizem e ouço o barulho do trem passando nas galerias abaixo, próximas. Sei que respondo uma ou outra coisa razoavelmente coerente, mas o domínio da conversa é sempre do outro, então não faz muita diferença minhas respostas parecerem pouco elaboradas. Hoje eu estou em qualquer lugar, menos próximo de mim. Penso brevemente num sorriso alheio, e sinto-me melhor.
Vou para os bloqueios. O tempo passa; calculo que ficarei muito tempo lá sozinho, pois alguns funcionários estavam indo embora. Tudo bem. Não quero me prender a essa gana por minutos preciosos e avidamente angariados que fatalmente escoarão, inúteis, junto ao fluxo de tédio nascido da abstinência mental de corpos puídos amontoados em bancos duros de um vestiário quente de um corredor infindável de salas monótonas e bicolores de uma estação de metrô.
Uma hora. Duas. Três. Quantas forem. Não me importo. Até gosto; é um tempo longo, e torna fácil pensar um pouco sobre ela.
A calça é da cor dos pilares, a camisa é da cor da monotonia e da ausência. Pessoas passam para lá e para cá; sinto um enjoo de marinheiro de primeira viagem com o movimento, pois estou balançando ao ritmo do fluxo. Aproximo-me de um pilar e nele toco com a ponta de um dedo das mãos cruzadas para trás, e não sei se está frio ou quente. Vou apoiando os outros dedos, a palma de uma das mãos. Sinto que a temperatura do pilar é minha própria. Isso me aproxima mais do concreto, como se este quisesse me abraçar. O vento bate-me no rosto com delicadeza, mas de qualquer jeito, e vem e volta de qualquer maneira. O barulho martelado dos tripés é caótico; mas parece haver um constante murmurinho, levíssimo, ao fundo de todo o ambiente, soporífero, convidativo...
Sinto-me parte da paisagem. Sou invisível para o mundo, mas o pilar me abraça e me reconforta. Descubro que o pilar sou eu, o murmurinho sou eu, o martelar sou eu, o vento sou eu, sou eu o mundo. Então o celular vibra com uma mensagem e essa sensação de integração termina.
É de um número que começa com 4000. Abro e descubro que, de tão importante que sou, um banco quer me conceder um cartão de crédito. Sinto-me tão especial quanto uma batata.
Observo os bloqueios como se fosse provável que algo surgisse das escadas para me salvar de minha própria implosão. Logo agora, um barulho de conversas chamou-me a atenção e ao olhar distraidamente achei que fosse ela; foi como um chacoalhão. Deixo tal impressão de lado sem esperar a confirmação de que não a veria descer do último degrau.
São oito horas da noite. Meu colega chega e vou embora, a passos arrastados. Sinto em mim um vazio como o da estação desabitada na madrugada...
Este vazio é como se ela tivesse passado a viver fora de mim. Ela, agora, habita o ambiente ao meu redor, não mais em mim. Portanto eu mesmo estou algures, procurando seu toque em cada brisa, seu frescor em cada chuvisco, sua voz em cada sussurro. Sinto-a em minhas respirações.
Mas o vazio lembra-me de minhas escolhas...
Não encontro ninguém no caminho até o vestiário, nem quando vou embora. É melhor assim. Embarco no trem. Vou a um lugar especifico, agora.
Amanhã volto a algures, como todos os dias.

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