quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Capitalismo e a liberdade de vender sua força de trabalho

No mundo em que vivemos somos livres para vender nossa força de trabalho para o empresário, ou morrer de fome. Na verdade, mesmo que você queira vender sua força de trabalho, talvez você também morra de fome, pois não há empregos para todos, apesar de a maioria das empresas ter um quadro reduzido de funcionários, super-explorados e sobrecarregados, para que a margem de lucro do patrão possa continuar aumentando.

Quando você conseguir seu emprego, onde você poderá utilizar o pleno potencial de seu cérebro em elaborar planilhas ou vender bilhetes de viagem ou empilhar caixas, você passa a ter a possibilidade de ser supervisionado pelo capataz do dono da empresa, pois os donos da maioria das empresas são desconhecidos, às vezes até de nome, que nunca puseram os pés no local. O capataz vai te dizer se você está trabalhando corretamente, ou seja, vai dizer que seu corte de cabelo ou sua barba é inadequada para a sua função, ou te assediar sexualmente se você for uma mulher cisgênera, transgênera ou homem transgênero.

Muitos vão dizer que não existe machismo e transfeminicídio, nem racismo, apesar de, por exemplo, as mulheres cis terem que ser mães e donas de casa e ganharem menos que os homens cis, apesar de a expectativa de vida de mulheres trans ser de 30 anos, apesar de os negros serem a maioria na favela. As pessoas negras, inclusive, ganham menos por fazerem as mesmas funções que os trabalhadores brancos. Então, na maior parte das vezes o seu supervisor estará te julgando pela sua cor, orientação sexual, identidade de gênero, religião, peso, até mesmo altura, tatuagens (desenhos na pele que, de acordo com o julgamento das mentes conservadoras, devem interferir muito na sua capacidade de fazer o trabalho), ou caso tenha algum tipo de deficiência. O mais engraçado é que o capataz no capitalismo nem sempre é um homem branco, cisgênero, heterossexual, magro, cristão; às vezes, apesar de um pouco raro, é uma pessoa negra, por exemplo, ou homossexual (apesar de que dificilmente será uma pessoa trans), etc. Afinal, melhor fazer de conta que as oportunidades são iguais para todos esses grupos de pessoas e colocar as pessoas oprimidas para oprimirem seus iguais. Por essa mesma lógica, o policial geralmente vem da periferia.

Enfim, voltando ao trabalho, caso você consiga um, você provavelmente fará um serviço repetitivo e emburrecedor. Você vai ficar com problemas ortopédicos bem rapidamente, e com problemas psicológicos depois de algum tempo. Você gastará cerca de 11 horas ou mais por dia trabalhando e no transporte público, 8 horas dormindo e terá 5 horas por dia para limpar sua casa, fazer compras, cozinhar, cuidar do nenê etc. Bom, talvez você acabe dormindo só umas 5 ou 6 horas, afinal. Entretando, nunca poderá mudar a sagrada carga horária do seu trabalho, apesar de seu patrão te pagar bem menos do que o valor que você produz durante seu turno. Isto se chama mais-valia, e é de onde o patrão tira o lucro para comprar alguns mimos que ele, sem nunca ter pisado no chão de sua própria fábrica, certamente merece, como o carro do ano, a casa de campo e de praia, as viagens internacionais (pelo menos 3 ou 4 por ano, para relaxar) e a escola particular para os filhos, além do cursinho e universidade de medicina. Apesar disso, muitas vezes ele não poderá pagar seu salário em dia alegando não ter dinheiro. Mas lembre-se sempre de que existe a liberdade de sair do seu emprego e morrer de fome.

Ah, rapidamente, alguns benefícios de quando você já for uma idosa aposentada (aos 80 anos): despesas médicas imensas por conta de doenças adquiridas trabalhando, ou por descaso administrativo do governo com saneamento básico; aposentadoria, abandono dos parentes, falta de abrigos públicos de qualidade para pessoas idosas que precisem de cuidados mas que não têm ninguém.

Agora que você já está há 10 anos vendendo sua força de trabalho, pois teve a sorte de não ter entrado no sorteio periódico de demissões aleatórias da empresa, você costuma chegar em casa com um cansaço físico e mental cada vez maiores. Talvez já tenha uns 3 anos que você não leu nenhum livro, mas talvez você nunca tenha lido nenhum mesmo, pois o ensino público é precário e não incentiva a leitura (se bem que, para muitas crianças que têm que trabalhar com 10 anos de idade para ajudar a família pobre, nenhum incentivo é capaz de vencer a barreira da pobreza). Enfim, você chega em casa e olha pro teto, olha para as almofadas do sofá, mas não liga a televisão porque já sabe que ela não tem nada para te oferecer, além de ódio de gênero, de cor de pele, de classe social. Você chora muitas vezes e às vezes até se machuca com o coração cheio de tanta dor com as coisas ruins que acontecem no mundo, os crimes ecológicos, cidades destruídas por causa de barragens rompidas, crianças e adultos esfomeados em países extremamente pobres, abuso policial, assassinatos de pessoas LGBTs, de mulheres, de negros, miséria financeira, miséria intelectual, miséria sexual, seus colegas de trabalho expulsando mendigos e pedintes como se fossem ratos, ciência sendo barrada pela religião e medicina sendo barrada pelo lucro, doenças facilmente evitáveis matando milhões. E chora também por você, com dor de cabeça e dor nas costas todos os dias, pelo sedentarismo e a depressão que se alimentam um do outro; sem dormir direito com o barulho de trânsito na janela do quarto, com o calor, com a menstruação - um peculiar requinte de crueldade da natureza com as pessoas que têm útero -, com a cabeça cheia de amigos com quem não se tem mais contato, o coração explodindo de ideias já naufragadas, de cores que nunca vão existir e palavras que nunca serão ditas para pessoas que nunca serão encontradas. Você, que o mundo ensinou a odiar, com a mente cheia de baixa auto-estima, auto-crítica destruidora, chora com a dor da não aceitação do próprio corpo e da própria mente, chora de ódio e de dor.

Mas para a maioria das pessoas isso é frescura.

Principalmente para quem fez 18 anos e ganhou carro de presente, cujas irmãs também ganharam carros de aniversário de 18 anos, que sempre praticou esportes porque não precisou trabalhar desde adolescente, quem hoje, aos 30, há muito formado em Administração numa das mais caras faculdades particulares, herdou a fábrica dos pais, aprsar de morar no exterior há 5 anos e nunca ter entrado nela. Para essa pessoa, que pode dormir a hora que quiser e acordar a hora que quiser, está reservada uma vida com inúmeras possibilidades de realização artística, científica, esportiva. Para ela e seus adeptos, você tem frescura.

Hoje você acorda atrasada e se odeia por ter que comer o café da manhã no metrô. Você entra no trabalho às 14h e sai às 23h30, e desta vez o capataz vai te chamar a atenção porque você se esqueceu de lavar o uniforme e está exalando o odor do seu suor de pessoa trabalhadora.

No capitalismo, temos uma livre escolha entre trabalhar ou morrer de fome.

Ou, se você tiver uma boa herança, pode tentar abrir alguma loja nova para competir com as ideias velhas do mercado. Então, dependendo de sua capacidade de herança, talvez você perca tudo para os grandes monopólios ou passe a ser um empresário. Mas estas possibilidades não existem para as pessoas da periferia, então não é o seu caso, que teve que vender sua força de trabalho para não morrer de fome.

No capitalismo existem meios de produção suficientes para suprir todas as necessidades humanas, mas curiosamente é um sistema no qual a sorte de nascimento está intimamente ligada ao seu futuro: um mundo de possibilidades sociais predefinidas e rígidas, apesar da aparência de poder escolher. No capitalismo, para a esmagadora maioria da população, existe a escolha entre vender a força de trabalho ou morrer de fome. Várias vezes nem escolhendo vender a força de trabalho exclui a possibilidade de morrer de fome.

Mas chega um momento em que o medo da miséria e de uma vida de merda se torna maior do que o medo da própria morte.

Sem saber, talvez você esteja apenas esperando este momento, quando para você e para muitos for tão insuportável viver num mundo tão miserável como o nosso, que será menos doloroso lançar-se numa batalha mortal do que viver num mundo em que não existe vida de verdade.

Seria melhor que fosse de outro jeito, seria melhor que cada oprimido tomasse conta da opressão de classe e da noite para o dia o mundo se tornasse outro, mas se tiver que ser pela dor, sei que você está preparada.

E eu estarei sempre com você!

"A vida não nos foi dada
Vamos arrancá-la com os dentes"

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Um século

Milhões de nós lutando e morrendo nas fronteiras pelos velhos e velhas camponeses, que esfomeados nos sustentavam, para sustentarem a si mesmos, para sustentarem uma nação que era o prenúncio do fim das nações, para sustentarem a humanidade e o mundo, colhendo o arroz com a foice e vivendo de migalhas, sabendo que o amanhã e a luta trariam o pão, a fartura.

Milhões de nós dobrando e moldando o ferro vermelho extremamente quente a marteladas e criando do zero um colosso, capaz de enfrentar de igual para igual todos os velhos e podres dragões belicosos que, temendo a extinção, uniram-se para nos cuspir veneno, fogo, ácido, no intento de nos destruir.

Resistimos. O que fazíamos, fazíamos por muito mais além do que nossas próprias necessidades pediam. O sangue de incontáveis pobres e miseráveis de todas as eras era nosso próprio sangue. E nosso próprio sangue seria no futuro o de incontáveis outros, que de nosso triunfo dependiam para conhecer um mundo que nem mesmo nós poderíamos imaginar, livre, uma liberdade que pouco saberíamos descrever, tão profunda, imensa, nunca antes provada por alguém. Este sangue é nossa única herança, e a maior de toda a humanidade.

Das pessoas mais estudadas à mais humilde cozinheira, todos éramos líderes, pioneiros e pioneiras de uma transformação completa na sociedade, dando um passo para fora da pré-história da humanidade em direção à verdadeira História, à busca do que se esconde além do horizonte das possibilidades, e mais adiante, além das fronteiras dos mistérios minúsculos e dos imensos.

Um universo inteiro se desvelava à nossa frente, hostil aos parasitas que nos devoravam há milênios. Levaríamos aos quatro cantos do mundo nossa voz e nossa força, dissipando a névoa de ilusões da mente de nossos irmãos e irmãs, e seríamos, então, invencíveis, no decorrer de apenas um instante.

Mas então você, junto a seus aliados e capangas, nos traiu, nos envenenou, nos debilitou, nos fez retroceder em inúmeros avanços, conspurcou nosso nome, nos impediu de lançar nossa voz ao mundo e de nos unificar.

Ainda hoje, tantos que poderiam estar ao nosso lado morrem achando que nós é que estávamos errados, servindo sem saber aos verdadeiros inimigos.

Seu nome é uma ofensa à revolução; seu crime um dos maiores já cometidos, senão o maior; maldito seja, verme, degenerado, que deveria renascer mil vezes, confinado e inofensivo, só para sofrer mil vezes a agonia da morte, e ainda seria pouco.

Seu legado é a continuação da miséria.

Maldito seja, verme, você e todos os seus seguidores.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Queria escrever seu nome

Eu sempre fui assim, de falar codinomes para escrever sobre as pessoas. Isso já há quase 15 anos... mesmo quando já não tinha nada a perder eu continuava escrevendo codinomes, ou a inicial do primeiro nome, coisas do tipo. N, J, B, essas pessoas aí, e também D, P, B, pois é, inicial igual não dava nem pra distinguir sobre quem era... e C, essa eu já dei fim, e foi uma das melhores coisas que já fiz na vida.

Eu queria escrever sobre várias pessoas e falar tanto sobre elas  agora, mas não consigo, e iniciais não vão me ajudar em nada... já escrevi contos inteiros para esconder na trama momentos que vivi com certa pessoa, porque eu preciso, preciso falar sobre essas pessoas, mas não me atrevo a me expor, mesmo que seja sempre tão óbvio, eu sempre poderia negar, "ah, não, era apenas uma história". Eu precisei dizer que estava me sentindo feliz por ter tocado a mão dela sem querer andando por aí, ou que uma vez, num passeio, sentei-me tão perto e meu rosto tão próximo que... nem sei... tanto tempo... e hoje me lembro mais é do vento no rosto, do cabelo solto e voando. Não digo se é meu cabelo, ou dela. No parque da Aclimação, eu lembro, olho no olho, e eu nem sabia de nada ainda... e na praça do catavento, uma promessa. Eu sempre precisei disfarçar minha vida inteira porque tinha tanto medo, e isso me fez ter tão pouco de tudo... e agora não é mesmo o momento de tentar dizer seu nome, falar como foi aquela vez, aquela outra, e a outra... agora, não... quem sabe, quem sabe um dia, agora que finalmente abracei as reticências e desprezei o culto, contrariando minha necessidade morta de uma estética do significado perfeito, quem sabe um dia eu finalmente solte também estas reticências e te chame pelo nome e fale aqui por onde foi que nós passamos e o que fizemos... e vou frisar seu nome, mil vezes, de mil maneiras, de mil apelidos... mas hoje, não, ainda não, desta vez ainda não posso...

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Felipe no País das Maravilhas

Cortei o cadeado e roubei minha propria bike, igual fizeram com uma outra há anos, e só por isso pude roubar a minha hoje, porque a outra me protegeu. Foi 40 em cada roda e acho que era isso. Pelo menos até agora não explodiu. Saí bem pelas descidas, fazia tempo, mas ainda é aquilo, nunca se esquece. Mas mesmo assim ainda vem vindo a Rebouças pra sempre. Será que agora eu morro? Nunca morri, por que ia morrer agora? Nunca um capacete. Preguiça e confianca, é assim que vai embora a maioria... espero que eu não, não...

Bom, não fui embora. Só no tempo. Morro da coruja, te falo que você não mudou nada em 3 anos e ninguém acredita, mas eu falo: a mesma luz, da mesma direção, fraca e laranja, o mesmo prédio estranho. Tem um reator nuclear lá, eu acho, por isso que é estranho e tem fantasma, dois cientistas morreram dissolvidos em titânio em estado gasoso, por isso lá dá essa impressão meio bizarra; mas se ficar só no banquinho da praça não pega nada.

Depois logo saí rodando porque, tá doido, lá tem fantasma e não adianta eu ser cético não, lá morreu gente e é escuro com umas luzes estranhas. Saí rodando veloz e desci pra avenida buscando a segurança de onde eu conheço bem, do reto e grande, do prédio que eu acho que é vermelho mas não tenho tanta certeza, na moral.

Sabe, tem uns fantasmas que quase não me largam. Mas eu, também, fico chamando eles do além só pra me doer, não sei por que faço isso. Aí é óbvio que eles vêm mesmo. Mas hoje eu chamei um e coloquei fogo nele, e agora ele vai ter que assombrar junto com os dois cientistas e a estudante de Química que também morreu por lá, diz que foram causas desconhecidas. Mas meu fantasma foi cremado. Deixei ele lá num dos lugares de guardar mangueira de incêndio. Esse não me atrapalha mais.

Saí rodando.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

"O amor pode até construir alguma coisa... mas é o ódio que transforma"

Como compensar tanta dor que o mundo nos causa?
Definitivamente não é oferecer flores a soldados. Não é pelo amor.
É tomar-lhes as armas e destruir a Casa Grande. É através do ódio.
Amor eu uso para outras finalidades. Amor eu tenho pela minha companheira e pelos meus irmãos de classe. Mesmo os que infelizmente agem contra si mesmos sem saber. Amor eu tenho por todos os trabalhadores, ainda vivos ou já mortos, de todos os tempos. Amor eu tenho pelos revolucionários que deram a vida pela teoria revolucionária. Amor eu tenho pela minha avó que morreu sem nunca observar a luta de classes por conta da televisão. Amor eu tenho pelos negros, pelas mulheres, pelos LGBTs, por todos os grupos vítimas de opressão, muitas vezes chamados de "minorias", mas que na verdade são a maioria da população. Amor eu tenho pelos esfomeados e pelos moradores de rua, crianças, jovens, adultos, velhos, de qualquer sexo, criminalizados por terem a audácia de permanecer vivos sendo miseráveis. Amor eu tenho pelos animais, todos eles, inclusive os que me servem de alimento, pela exploração absoluta e da qual nunca se darão conta. Amor eu tenho pelos grãos de areia da praia que me lembram que o universo é composto de partículas infinitamente pequenas e que Deus não existe e que somos apenas um amontoado do que restou de uma estrela que explodiu e morreu.

Por tudo isso eu tenho amor, pois o amor é que me aproxima dessas coisas, lugares, pessoas, animais. O amor constroi.
Mas somente esta é a função do amor.
O mais importante cabe a outro sentimento. Cabe ao ódio... porque o ódio é que transforma.

E eu não quero mais só a liberdade. Eu quero sangue. Quero vísceras espalhadas. Quero nossa vingança. Uma vingança que não é mais saciável. Nossa moral não é a deles. Irmã, irmão: não se iluda. Me dê sua mão. Se o que você quer é o amor, saiba que no fundo é o que eu quero também. Mas só pelo ódio todos finalmente serão livres para amar e não odiar mais. Marchemos juntos.

"Vai, encara, que nem o Rei Davi. Seu gigante vai cair, com só uma pedrada"

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A ponte

Agora eu te busquei lá no longe, nas suas estrofes corridas que não chegam mais, e lembrei-me de que era isso que eu também fazia. Apesar de aqui e ali toda hora nos últimos dias, eu ainda assim corro e agora eu reencontrei sua cor, que é vermelha, e me senti tingido e foi-se embora todo o verde que eu ainda cismava em regar. Moleca, você é mais livre que as ondas do vento mas tão dura que o diamante nem cisca. Você dobra até quase partir mas volta com força e ninguém sabia que seria tão impossível assim te quebrar. Você vai e nem me avisa e eu me engano e choro mas eu penso e você me cura dentro de mim sem nem estar aqui, como você faz isso? Eu não sei mas você é toda inteira primavera, e eu só um brotinho que se abre pra te ver.

Ainda eu te tirando de mim

Te corto em mil pedaços e com dor e prazer te vejo partindo. A lembrança de Nossa Senhora da Penha eu desdobrei e amarrei e penso em queimar, daqui uns 10 minutos; o verde me escapou dos dedos e quis se livrar, pareceu-me uma súplica. Mas o mundo verde era o seu, nunca o meu, e junto com todas as outras cores irá sumir. Dou risadas estranhas e me sinto estranho fazendo coisas estranhas que não costumo fazer, como estou fazendo agora: não sei bem o que sentir ao rasgar uma lembrança tão antiga e que me era tão preciosa. Mas... a lembrança palpável acabou. O fogo queima. E a mente, imagino, dará cabo do resto.

Um adeus simples

É preciso deixá-la ir.
Na verdade, é preciso afugentá-la.
Despeço-me com um poema,
se é que poema é isto que escrevo aqui sem rima nem régua,
se é que são versos estes últimos respiros da adolescência,
se, e apenas se, a academia me desculpar o incômodo de não servi-la nunca.
Despeço-me brevemente,
não mais aquela epopeia doce que eu te dava sempre,
mas um adeus simples e vulgar
- exceto pelo fato de que o chamo de poema,
e vocês são obrigados a aceitar que isto é um poema,
apesar de eu rejeitar a poesia e sua métrica e sua desmétrica.

Então vão embora, cartas, fotos, vídeos, textos, senhas e lamentos;
sumam ao passo que eu os veja,
voem para além da lembrança e se apaguem a 600 quilômetros de distância à beira do mar.

Não preciso desta dor
Estou de mudança
Nesta casa não mais vou viver.

Era tudo apenas um devaneio de um rapaz com tempo para uma morte lenta, rara e elegante.