No mundo em que vivemos somos livres para vender nossa força de trabalho para o empresário, ou morrer de fome. Na verdade, mesmo que você queira vender sua força de trabalho, talvez você também morra de fome, pois não há empregos para todos, apesar de a maioria das empresas ter um quadro reduzido de funcionários, super-explorados e sobrecarregados, para que a margem de lucro do patrão possa continuar aumentando.
Quando você conseguir seu emprego, onde você poderá utilizar o pleno potencial de seu cérebro em elaborar planilhas ou vender bilhetes de viagem ou empilhar caixas, você passa a ter a possibilidade de ser supervisionado pelo capataz do dono da empresa, pois os donos da maioria das empresas são desconhecidos, às vezes até de nome, que nunca puseram os pés no local. O capataz vai te dizer se você está trabalhando corretamente, ou seja, vai dizer que seu corte de cabelo ou sua barba é inadequada para a sua função, ou te assediar sexualmente se você for uma mulher cisgênera, transgênera ou homem transgênero.
Muitos vão dizer que não existe machismo e transfeminicídio, nem racismo, apesar de, por exemplo, as mulheres cis terem que ser mães e donas de casa e ganharem menos que os homens cis, apesar de a expectativa de vida de mulheres trans ser de 30 anos, apesar de os negros serem a maioria na favela. As pessoas negras, inclusive, ganham menos por fazerem as mesmas funções que os trabalhadores brancos. Então, na maior parte das vezes o seu supervisor estará te julgando pela sua cor, orientação sexual, identidade de gênero, religião, peso, até mesmo altura, tatuagens (desenhos na pele que, de acordo com o julgamento das mentes conservadoras, devem interferir muito na sua capacidade de fazer o trabalho), ou caso tenha algum tipo de deficiência. O mais engraçado é que o capataz no capitalismo nem sempre é um homem branco, cisgênero, heterossexual, magro, cristão; às vezes, apesar de um pouco raro, é uma pessoa negra, por exemplo, ou homossexual (apesar de que dificilmente será uma pessoa trans), etc. Afinal, melhor fazer de conta que as oportunidades são iguais para todos esses grupos de pessoas e colocar as pessoas oprimidas para oprimirem seus iguais. Por essa mesma lógica, o policial geralmente vem da periferia.
Enfim, voltando ao trabalho, caso você consiga um, você provavelmente fará um serviço repetitivo e emburrecedor. Você vai ficar com problemas ortopédicos bem rapidamente, e com problemas psicológicos depois de algum tempo. Você gastará cerca de 11 horas ou mais por dia trabalhando e no transporte público, 8 horas dormindo e terá 5 horas por dia para limpar sua casa, fazer compras, cozinhar, cuidar do nenê etc. Bom, talvez você acabe dormindo só umas 5 ou 6 horas, afinal. Entretando, nunca poderá mudar a sagrada carga horária do seu trabalho, apesar de seu patrão te pagar bem menos do que o valor que você produz durante seu turno. Isto se chama mais-valia, e é de onde o patrão tira o lucro para comprar alguns mimos que ele, sem nunca ter pisado no chão de sua própria fábrica, certamente merece, como o carro do ano, a casa de campo e de praia, as viagens internacionais (pelo menos 3 ou 4 por ano, para relaxar) e a escola particular para os filhos, além do cursinho e universidade de medicina. Apesar disso, muitas vezes ele não poderá pagar seu salário em dia alegando não ter dinheiro. Mas lembre-se sempre de que existe a liberdade de sair do seu emprego e morrer de fome.
Ah, rapidamente, alguns benefícios de quando você já for uma idosa aposentada (aos 80 anos): despesas médicas imensas por conta de doenças adquiridas trabalhando, ou por descaso administrativo do governo com saneamento básico; aposentadoria, abandono dos parentes, falta de abrigos públicos de qualidade para pessoas idosas que precisem de cuidados mas que não têm ninguém.
Agora que você já está há 10 anos vendendo sua força de trabalho, pois teve a sorte de não ter entrado no sorteio periódico de demissões aleatórias da empresa, você costuma chegar em casa com um cansaço físico e mental cada vez maiores. Talvez já tenha uns 3 anos que você não leu nenhum livro, mas talvez você nunca tenha lido nenhum mesmo, pois o ensino público é precário e não incentiva a leitura (se bem que, para muitas crianças que têm que trabalhar com 10 anos de idade para ajudar a família pobre, nenhum incentivo é capaz de vencer a barreira da pobreza). Enfim, você chega em casa e olha pro teto, olha para as almofadas do sofá, mas não liga a televisão porque já sabe que ela não tem nada para te oferecer, além de ódio de gênero, de cor de pele, de classe social. Você chora muitas vezes e às vezes até se machuca com o coração cheio de tanta dor com as coisas ruins que acontecem no mundo, os crimes ecológicos, cidades destruídas por causa de barragens rompidas, crianças e adultos esfomeados em países extremamente pobres, abuso policial, assassinatos de pessoas LGBTs, de mulheres, de negros, miséria financeira, miséria intelectual, miséria sexual, seus colegas de trabalho expulsando mendigos e pedintes como se fossem ratos, ciência sendo barrada pela religião e medicina sendo barrada pelo lucro, doenças facilmente evitáveis matando milhões. E chora também por você, com dor de cabeça e dor nas costas todos os dias, pelo sedentarismo e a depressão que se alimentam um do outro; sem dormir direito com o barulho de trânsito na janela do quarto, com o calor, com a menstruação - um peculiar requinte de crueldade da natureza com as pessoas que têm útero -, com a cabeça cheia de amigos com quem não se tem mais contato, o coração explodindo de ideias já naufragadas, de cores que nunca vão existir e palavras que nunca serão ditas para pessoas que nunca serão encontradas. Você, que o mundo ensinou a odiar, com a mente cheia de baixa auto-estima, auto-crítica destruidora, chora com a dor da não aceitação do próprio corpo e da própria mente, chora de ódio e de dor.
Mas para a maioria das pessoas isso é frescura.
Principalmente para quem fez 18 anos e ganhou carro de presente, cujas irmãs também ganharam carros de aniversário de 18 anos, que sempre praticou esportes porque não precisou trabalhar desde adolescente, quem hoje, aos 30, há muito formado em Administração numa das mais caras faculdades particulares, herdou a fábrica dos pais, aprsar de morar no exterior há 5 anos e nunca ter entrado nela. Para essa pessoa, que pode dormir a hora que quiser e acordar a hora que quiser, está reservada uma vida com inúmeras possibilidades de realização artística, científica, esportiva. Para ela e seus adeptos, você tem frescura.
Hoje você acorda atrasada e se odeia por ter que comer o café da manhã no metrô. Você entra no trabalho às 14h e sai às 23h30, e desta vez o capataz vai te chamar a atenção porque você se esqueceu de lavar o uniforme e está exalando o odor do seu suor de pessoa trabalhadora.
No capitalismo, temos uma livre escolha entre trabalhar ou morrer de fome.
Ou, se você tiver uma boa herança, pode tentar abrir alguma loja nova para competir com as ideias velhas do mercado. Então, dependendo de sua capacidade de herança, talvez você perca tudo para os grandes monopólios ou passe a ser um empresário. Mas estas possibilidades não existem para as pessoas da periferia, então não é o seu caso, que teve que vender sua força de trabalho para não morrer de fome.
No capitalismo existem meios de produção suficientes para suprir todas as necessidades humanas, mas curiosamente é um sistema no qual a sorte de nascimento está intimamente ligada ao seu futuro: um mundo de possibilidades sociais predefinidas e rígidas, apesar da aparência de poder escolher. No capitalismo, para a esmagadora maioria da população, existe a escolha entre vender a força de trabalho ou morrer de fome. Várias vezes nem escolhendo vender a força de trabalho exclui a possibilidade de morrer de fome.
Mas chega um momento em que o medo da miséria e de uma vida de merda se torna maior do que o medo da própria morte.
Sem saber, talvez você esteja apenas esperando este momento, quando para você e para muitos for tão insuportável viver num mundo tão miserável como o nosso, que será menos doloroso lançar-se numa batalha mortal do que viver num mundo em que não existe vida de verdade.
Seria melhor que fosse de outro jeito, seria melhor que cada oprimido tomasse conta da opressão de classe e da noite para o dia o mundo se tornasse outro, mas se tiver que ser pela dor, sei que você está preparada.
E eu estarei sempre com você!
"A vida não nos foi dada
Vamos arrancá-la com os dentes"
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