quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A morada dos imensos anseios

     Duas mil e quinhentas silenciosas e intermináveis explosões distantes não valem a beleza do brilho que, refletindo a mais tênue linha de luz fraca de uma lâmpada velha de um poste torto à noite, corisca singelo no fundo das pupilas dos olhos preguiçosos de Juliana; pois é ali, precisamente ali, nos portões negros da fortaleza rubra inabalável, que tudo renasce escarlate e furioso e maldito ou encontra dura morte sob o fragor de infinitos brados por liberdade.

domingo, 22 de dezembro de 2013

     Os pontos de ônibus novos foram colocados por toda a cidade de São Paulo, pois antes não havia lugar para as propagandas, nos pontos antigos; só havia lugar para as pessoas, ainda que pouco. Algo estava errado.

     Estes novos pontos são feitos de blocos inteiros de capitalismo.

domingo, 27 de outubro de 2013

Arquivamento

     Percebo agora que, ao escrever aquelas palavras em linhas tortas e mal planejadas, eu estava vivendo numa analogia aquela troca de olhares de quase dez anos atrás. Se naquele dia distante no parque olhei, desta vez escrevi; se daquela vez me comprometi, desta vez me libertei de compromissos; se daquela vez me agrilhoei num desejo possessivo e obcecado, desta vez passei a amar sereno. Portanto imagino que tudo aquilo chegou verdadeiramente ao fim, toda aquela sensação de decepção e de derrota percebo-os agora como mentiras em que me obriguei a acreditar. Não repudio a essência dos sentimentos que nasceram e cresceram, mas sim a maneira destrutiva com que tudo se deu.
     O marco de agora é isento de obrigações. Ao tecer cada letra eu destecia o manto de dores e orgulho ferido que eu insistia em carregar. O tecido desfiado caiu ao chão e eu o pisei sem pensar, as máculas destes anos eu deixei de lado sem muitas ponderações. Ao deixá-lo para trás, afinal, contemplei um futuro sem nomes brilhando, nos quais eu antes grudava ainda mais brilhos, um futuro sem obrigações estabelecidas pela tradição, e nenhuma obrigação de fato, um futuro sem fetiches nem tabus.

sábado, 7 de setembro de 2013

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agrafia agrafia desespero
deixa eu jogar umas palavras no meio pra parecer que elaborei este texto pensando nessas minúcias que eu nunca entendi na arte
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agrafia agrafia agrafia agrafia agrafia sentimento de falência intelectual agrafia agrafia agrafia agrafia
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incompreensão

Um episódio - parte 2

Parece-me restar apenas a espera pela morte certa.
Já estou há dois dias encurralado contra o muro e a caçamba de lixo. O problema maior agora é a febre por causa da perna ferida.
O primeiro dia passou sem problemas. Mal deram atenção a este beco, que continuaria a passar despercebido se eu não precisasse ter matado hoje cedo um curioso que chegou perto demais. Ele havia vindo à viela para mijar, mas ficou cismado com o movimento que viu, perto da caçamba. Fui eu: deixei cair o cantil ao acordar sobressaltado com o barulho do sujeito. Como ele viesse devagar para ver o que estava atrás da caçamba, se um bicho ou outra coisa, ainda tive tempo de escolher a pistola que talvez fizesse menos barulho dentre as três. Não foi suficientemente silencioso o tiro, entretanto, ainda que certeiro. Logo vieram mais três soldados correndo para acudir o amigo ferido; eu os abati prontamente.
Não sei se só esses quatro foram designados a ocupar a casa ou se os restantes estão receosos de aparecer. Talvez estejam tramando alguma forma de me vencer.
Em meio à expectativa, pus-me a me lembrar dos tantos que comigo e com outros membros do grupo decidiram enfrentar o exército internacional, e como cada um deles foi morto. Os problemas maiores começaram há duas semanas, quando fomos atacados por um destacamento inimigo logo ao tentar evadir a base velha. A ideia era, obviamente, não sermos vistos, e alcançar a kombi para escaparmos em direção ao endereço onde outros grupos estavam se reunindo - informação que recebêramos criptografada pela frequência de rádio pela qual nos comunicávamos com os demais grupos - mas não contávamos com a presença daqueles soldados. Nosso grupo sofreu, então, uma grande dispersão. Patrícia foi a primeira a ser atingida; eu jamais poderia me esquecer de como seus cabelos tão enroladinhos emolduraram seu rosto quando ela caiu já morta com um tiro que deve ter-lhe explodido o coração. Metade do grupo, a minha, continuou correndo em direção à kombi; já a outra foi encurralada próxima ao corpo de Patrícia, ao qual logo se juntaram o de Emerson e de Alexandre. Emerson certa vez me disse que se havia apaixonado por mim. Já Alexandre eu mal conhecia. Raphael conseguiu desarmar um soldado e usou seu corpo como escudo; enquanto ele se defendia, Lúcia mergulhou, apanhou a arma de Patrícia e conseguiu matar um dos soldados, sendo morta logo em seguida pelo seu próximo alvo. Foi com Lúcia que, pela primeira vez sem grandes receios, fumei um cigarro, ainda adolescente, e ela fumou comigo só para eu me sentir mais seguro, embora havia uns anos ela não mais tocasse num cigarro - contou-me isso depois. Luís tentou correr mas também foi atingido, pelas costas, e fico imaginando o quanto Antônio teria sentido sua perda se soubesse. Eu e mais cinco pessoas havíamos então chegado à kombi. Raphael estrangulou o soldado que lhe servia de escudo; seus braços ficaram soltos como os de um boneco. Por alguma necessidade viril, os homens que se dispuseram a enfrentar Raphael depuseram suas armas e, encurralando-o, partiram para atacá-lo com as próprias mãos. Quem o conheceu sabia que esse ataque seria uma tolice da qual alguns não sobreviveriam para se arrepender. De fato, Raphael, ao se ver livre do perigo das armas, largou o cadáver que arrastava e, na violenta briga que se passou, provou o valor de seus quase dois metros de altura e de força bruta. Três soldados já estavam estirados quando um outro, mostrando bom senso, rastejou até uma pistola e deu tantos tiros em Raphael quantos foram necessários para que enfim ele sucumbisse. Atropelamos o atirador com a kombi logo após o último disparo; cinco segundos antes, poderíamos ter salvado Raphael. Antes que mais soldados viessem, resgatamos Rafaela, que morreu ainda na kombi de hemorragia por conta de um tiro na barriga.

Lembro-me ainda bem deles, mas o cansaço agora é forte demais; nenhum outro movimento na viela até agora, e talvez já tenha passado de meia-noite. A febre provavelmente vai piorar durante a madrugada, e não tenho comida suficiente para muitos dias, muito menos água. Tentarei ficar acordado o máximo que puder, embora ceder ao cansaço seja inevitável daqui a pouco. Só espero que eu tenha a sorte de não ser morto durante o sono. Depois de tantas coisas, gostaria pelo menos de conhecer a morte enquanto estivesse consciente.

Um episódio - parte 1

Há pouco, a última de meus companheiros foi morta: ela atirava, da sacada da casa onde havíamos resistido sozinhos por dois dias, contra os soldados; mas alguém conseguiu subir por algum ponto cego da casa e cortou-lhe o pescoço. Quando vi, corri contra o desgraçado, lutamos e, após levar eu mesmo uma facada na perna, derrubei-o igualmente esfaqueado para o chão a três andares de altura. Com gosto vi que não mais se mexeu após a queda.
Voltei-me imediatamente a ela, entretanto não pude apreciar a luz de seus olhos se esvaindo, pois eu demorara na luta contra o invasor; já era sem vida, o corte fora demasiado profundo. A pele de seu rosto estava absurdamente suja, assim como a minha. Havia tempo não podíamos nos limpar, porque mal dormir era-nos possível. Agora, bem mais do que antes, o cheiro de sangue pairava conosco, enquanto eu a envolvia nos braços; mas desta vez não era o cheiro do sangue dos soldados que matáramos, mas sim do seu, que, escorrido, começava a se espalhar em sua camiseta encardida.
Mesmo sob aquelas circunstâncias horríveis, havia uma beleza indescritível em suas feições. Minha perna machucada, eu a esqueci naquele momento; pois amava Aline e odiava o Novo Regime, que acabava de matá-la, e que já matara todos os outros que me eram caros no mundo. Eu a amava, contudo, mais do que já amei qualquer um; pois pode até ser possível não amar a última pessoa amiga na iminência da morte, mas não alguém como ela. Havia nascido para ser amada mesmo nas condições em que o amor mais evita surgir. Era bela no vigor belicoso e na destreza com que manejava o rifle, e em como acostumou-se logo à rotina de assassinatos em que passamos a viver; era bela em todas essas coisas, e em outras, e sua beleza perdurará no chão por ela metralhado em seu esforço para nos defender, esforço que levou à morte diversos soldados que tentaram se aproximar da casa até então.
Nossa despedida deveria ser curta. Olhei mais uma vez seus estreitos olhos orientais, agora opacos, que tanto me sorriram nos tempos de paz; toquei seu rosto e seu cabelo. Então, novamente retornando à realidade imediata, cortei parte de sua camiseta para enrolar e amarrar em minha perna, a fim de parar de perder tanto sangue. Ao tirar-lhe o coldre da cintura, fazendo seu corpo se mexer, pungiu-me outra vez o coração o fato de que seus movimentos autônomos cessaram para sempre. Não conseguindo mais permanecer ali, tanto pelo perigo quanto pela dor da perda imensa, com um grito furioso preso na garganta rastejei para fora da casa, pelos fundos.
Rodrigo estava ali perto, já apodrecendo; levara um tiro na cabeça quando tentava alcançar uma mochila de um soldado morto. Rodrigo arriscava demais. Eu gostava muito dele. Passando por seu corpo, tomei para mim mais alguma munição. Agora eu já possuía três pistolas e uma caixa cheia de cartuchos e balas que eu não fazia ideia se serviriam; não havia tempo para me deter averiguando a compatibilidade da munição, era preciso me esgueirar o mais rápido possível para longe da casa, pois já a invadiam, agora que Aline não mais os afastava com os tiros do rifle.

Era noite e ninguém me viu me arrastando em direção ao fundo da viela em que a porta de trás da casa dava.

domingo, 25 de agosto de 2013

Ganondorf e a luta de classes

Gerudo Valley: terra dos ladrões, árida, em que mulheres negras enfrentam uma luta diária por sobrevivência, furtivamente, por meio de roubos e de uma organização social quase independente do sistema monárquico de Hyrule, sistema este por elas desprezado e contra o qual têm constantes conflitos. A concentração de renda, evidente no alto padrão do castelo de Hyrule e nos demais centros aristocráticos ao seu redor, inevitavelmente é o fator que está no princípio das desigualdades e que culmina na necessidade de milhares de indivíduos de viverem à margem das leis impostas pela minoria rica; daí nascem as ladras do vale Gerudo. Então, no âmago dessa classe oprimida e isolada pelos reis que vivem na soberba, nasce Ganondorf Dragmire, destinado a ser o rei dos ladrões e a libertar seu povo.
Obviamente, não é na pele de Ganondorf que o jogador de Zelda se encontra, e sim na pele do herói dos aristocratas de Hyrule, Link, o Herói do Tempo - cuja sina, intrinsecamente relacionada à de Ganondorf, transcende as gerações desde a primeira até a última das eras numa eterna batalha em que a falsa dicotomia entre o Mal e o Bem é, de maneira bem conveniente aos poderosos, representada por Ganondorf e Link - destinado desde seu nascimento a combater o "mal" que Ganondorf e, consequentemente, todo o seu povo, representa aos olhos das classes favorecidas pelo regime em questão.
Parece amargo o destino de Hyrule quando, enfim, Ganondorf obtém parte das relíquias divinas, conhecidas pelo nome Triforce, e destrói boa parte das capitais e do sistema que antes vigorava. Mas isso não passa de milênios de opressão finalmente vingados, de maneira impetuosa, como não poderia deixar de ser. A destruição do sistema inevitavelmente acarretaria na destruição das instituições estabelecidas pela aristocracia de Hyrule, e só por meio dessa destruição o sistema poderia ser subjugado e erradicado.
Infelizmente, quando Ganondorf é derrotado no fim do jogo, o jogador e a princesa Zelda voltam no tempo, 7 anos antes da batalha final (dessa época em questão, do jogo Ocarina of Time), bem próximos do ponto em que Ganondorf se apossaria de parte da Triforce; entretanto, por causa de alguma magia, inerente ao universo do jogo, Ganondorf também não está mais nesse passado, pois teria sido morto no futuro por Link. Não foi, porém, uma simples morte; o espírito de Ganondorf ficou aprisionado numa espécie de dimensão paralela, e toda sua existência foi apagada daquela época.
Mas o "Mal", predicado de Ganondorf e de alguns outros "vilões" (curioso como esse termo refere-se, primordialmente, ao sujeito que vive numa vila, ao plebeu, ao pobre que trabalha pesado para sustentar os ricos) durante toda a série, sempre se liberta e retorna.
Tomando como pressuposto o mito das reencarnações das personagens durante a série, é possível afirmar que a essência da luta de Ganondorf é a mesma em todas as suas reencarnações. Sendo assim, ainda que no Ocarina of Time tudo isso que eu escrevi não tenha ficado claro por conta, talvez, de limitações técnicas ou de estilo narrativo, lembro-me de quando, no Wind Waker (se não estou enganado quanto ao jogo certo da série) - cuja história é posterior à do Ocarina of Time - Ganondorf, mais uma vez líder de um povo e de criaturas desajustadas e enjeitadas, conta a Link, num diálogo marcante, sobre toda a opressão de seu povo durante centenas e centenas de anos, desde eras passadas, e sobre como seu objetivo não é lutar pelo propósito simples de destruir o mundo, mas sim por libertar os povos oprimidos.
Decerto toda esta análise tem muitas diferenças com o mundo real e atual para fazer uma analogia completa. Mesmo assim, os pontos em comum são bem claros. Para não ficar aqui só engrandecendo Ganondorf, devo dizer que ele destruiu, também, lugares e povos que eram igualmente oprimidos pela aristocracia; mas como exigir absoluta racionalidade de um sujeito que carrega na essência de seu ser o ódio e o desejo de sangue numa retaliação por gerações infinitas de seres (seu povo de ladrões, principalmente) desgraçados pelo sistema? Ganondorf não é puramente o libertador e o salvador dos povos, que traria igualdade a todos e instituiria um novo sistema sem classes, sem ricos ou pobres; ele é, primordialmente, o desespero e o ímpeto belicoso que surge quando as tensões sociais são tão aflitivas que não mais se pode conter o braço que se levanta em luta.
E pensar, hoje, que sempre nutri mais simpatia pelo "vilão" da série Zelda e que a música tema de Gerudo Valley sempre foi a minha favorita... eu só não tinha noção dos significados por trás da "maldade" de Ganondorf.

sábado, 17 de agosto de 2013

Fetiche

Devo admitir minha crescente admiração por cabelos. Seria uma cabelofilia, capilofilia, o quê? Estudo grego e não sei. Enfim, hoje novamente fui vítima dessa minha paixão após despedir-me de duas amigas que embarcavam em seu ônibus no terminal da estação de metrô, quando saí em direção ao ponto de minha condução.
Uma mulher com uma jaqueta azul se apressava alguns metros adiante em direção ao que me pareceu ser meu ônibus; mas o que eu vi mesmo foi o movimento dos cabelos, uma cascata densa de cachos muito enrolados de negros cabelos de negra, que lhe caíam até o meio das costas, cascata que dançava com o andar da moça. Meus olhos em fascínio, o queixo caído, apertei meu passo para conseguir entrar no mesmo ônibus, que de fato era o meu, e obtive sucesso.
Minha primeira vontade, após entrar em seguida à moça, foi a de mergulhar o rosto em seus cabelos. Quis pedir para que me deixasse tocá-los, quis dizer-lhe que eram a coisa mais bonita que eu já vira em tanto tempo, que seus cachos venciam facilmente mesmo os longos cabelos castanhos de minha sempiterna Capê. Quase me atrevi a falar com ela, mas o máximo que consegui foi intrometer-me no diálogo que ela principiara com o motorista a respeito dos horários dos ônibus, antes de ele dar partida no motor; entretanto, ela não se dirigiu a mim em momento algum, apesar de eu ter criado situações favoráveis a isso.
Ela tinha também a beleza de seus cabelos no corpo e no rosto, a beleza negra que pouco ou nada se rendera aos traços europeus das miscigenações. Certa vez ela mudou o braço com que se segurava e, nesse momento, brevemente nos olhamos, e resta-me ainda agora a desconfiança de que nessa viagem de ônibus estive acompanhado de deusa pagã da beleza e da paixão e dos encantamentos e dos cabelos. Sei que fui desonesto ao fazer isto, mas utilizei meu celular para tentar filmá-la e ter sua recordação por muito tempo. Quando, contudo, fui ver o vídeo, agora há pouco, descobri que de nada me servirá, porque a gravação mal a mostra direito; eis que agora me pergunto se não havia mesmo algo de místico nela, por ter-me tanto assim enlevado e por não ter conseguido filmá-la, apesar de ter boas condições de luz e posição para fazê-lo bem. Perdida assim a prova desse encontro, não poderei mostrar nada a meus amigos para que acreditem quando eu disser ter visto o mais belo dos cabelos.
E foi assim que hoje, mais uma vez, me apaixonei.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Outra crônica de minhas paixões

           Hoje de manhã, fui comprar dois cafés, um para mim e um para uma amiga, pois disse ela que devemos oferecer uma bebida quente para uma pessoa amiga que esteja triste, como ela estava.
           Comprei a ficha e fomos ao balcão. Chegou a moça e ofereceu seu atendimento; respondi:
           - Dois mocaccinos.
           Alguma coisa engraçada havia acontecido no processo, não me lembro o quê: ou eu gaguejei, ou ela falou algo errado, ou as duas coisas, não sei. Nesse nosso breve diálogo, ela abriu um sorriso muito bonito e verdadeiro, daqueles quando a outra opção seria segurar um riso de constrangimento mútuo. O impacto que esse sorriso causou é justamente o motivo por eu não me lembrar direito por que nós sorrimos um para o outro - meu sorriso em retribuição nascera de imediato, logo após o dela.
           Enquanto ela se afastava para pegar os cafés, virei para minha amiga, que, disse ela posteriormente, me observava e já suspeitava do que eu iria dizer. Minhas feições eram de uma tola alegria. Eu disse:
           - Acabo de me apaixonar pela moça da lanchonete.
           - Eu sei! Na hora que ela riu eu já percebi pela sua carinha! - ela respondeu.
           Caímos na gargalhada. Ela me conhece muito bem.

domingo, 4 de agosto de 2013

Zelda

Depois de muitos anos jogando muitos Zeldas, e agora tendo terminado novamente o Ocarina of Time, só posso reafirmar que este é o melhor de todos os jogos que já joguei. Merece remakes até o final dos tempos ...

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Correria

     Adquiri um jogo de videogame que é na verdade um relançamento de um antigo jogo de combate com naves espaciais. Há uma fase nesse jogo (a primeira fase, aliás) que é utilizada num outro jogo como um dos cenários de luta entre personagens diversos.
     Joguei muito, principalmente, este jogo de luta a que por último me referi, e bastante com meus primos. Quanto ao cenário, um dos favoritos da maioria dos jogadores por ser bem simples e horizontal, propiciando uma disputa mais equilibrada entre os combatentes, meu primo chamava-o "Correria".
     Curioso, no começo achava quase herético que ele o rebatizasse dessa maneira tão peculiar e aparentemente tola, barata - ora meu primo sempre vem com essas brincadeiras que eu não gosto e lembrando agora certa vez aos oito ou nove anos de idade até mesmo imprimi um retângulo vermelho acabando com toda a tinta da impressora só para expressar minha indignação quanto às suas atitudes num futebolzinho que fazíamos no corredor da casa de meus avós que me deixaram indignado nossa como ele dava patada na bola puta que pariu não dava pra defender e doía pra burro eu ficava muito nervoso mas então ele já ficara tão emputecido antes com meus chiliques que foi-se embora para a casa de sua outra avó na rua de baixo antes que eu apresentasse-lhe o cartão vermelho que significava expulsão de campo, que tolice minha e dele mas mais minha e fiquei com remorso aquele dia mas a atitude dele eu não reprovo porque eu sempre fui o chatinho que prezava pelas formalidades fajutas - porém hoje sinto uma simpatia grande pelo apelido. O nome correto da fase que agora jogo alegre no videogame novo é só uma letra diferente desse apelido, mas soa muito melhor para mim chamá-la Correria.
     Caro Arnon, você sempre esteve certo, mesmo que tenha nascido a ideia de forma tão ingênua. Correria.

domingo, 14 de julho de 2013

Ibirapuera

     Só depois de idos quatro ou cinco anos é que voltei ao Ibirapuera, desta vez sem trepadas em árvores nem nada além de andar de bicicleta e patins, sem ônibus indo pro Jabaquara, sem registros fotográficos de meus desequilíbrios de ciclista incipiente, nem do trajeto, nada também de nós agachados como em time de futebol americano; só pedal, pedal, voltas grandes pelo parque, e desta vez andei melhor, tinha de ver só. Talvez se desde criança tivesse eu andado sempre muito de bicicleta, poderia ser melhor que a média no pedalar; sinto-me tão à vontade lá sobre as duas rodas, e foi tão somente uma dezena de vezes que me arrisquei.
     Mas o que de fato importa é que o preço do aluguel de bicicletas aumentou muito desta meia década para cá, olha, te contar, mesmo assim fui rodar por duas horas e fiz bem, gostei, irei mais vezes, mas sem fotos, não as quero sem aquela seriedade que fazíamos sempre em pose de dupla, em vários lugares; mas você sempre ria e quebrava o clima da foto, só que ia aquela foto mesmo pro baú das lembranças e dane-se, era melhor assim, sempre melhor assim.
     Mas de fato importa mesmo é outra coisa, bem que logo vi que nada representava o preço do aluguel na ordem das importâncias, foi tudo tergiversação, eu só queria era um tempo vertido em texto para precisar o que me faltou no parque desta vez, e foi a graça de você de bicicleta ter batido na menina anônima igualmente ciclando e de terem rido caídas no chão, eu sem saber o que fazer; também sua imitação do barulho da passagem de um veículo veloz cortando o vento quando depois eu quis treinar curvas, e o contemplar pueril sobre a pontezinha arqueada dos peixes disparando para os farelos de pão jogados, e eu subindo em árvore só para você ver que eu gostava de subir em árvore, e o tapete bege de folhas secas que farfalhava aos passos nossos e que eu dizia esconder cocô de cachorro só para me divertir imenso e te cansar a beleza infindável.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Ela agora rouba nomes

           Seus olhos são como os dela quando sorriem envergonhados, como a resguardar-se da culpa de ter feito algo errado, algum comentário tolo. Você até põe as mãos sobre a boca da mesma maneira, como ela quando sorria assim. E sua boca também lembra-me muito a dela: de amplo sorriso, de duas fileiras de dentes, por cima moldados por um "m" bem-delineado - em vez da fina linha que, acredito, é mais frequente nos sorrisos -; por baixo, o lábio vai longo e mostra bonitos todos os dentes. Os cantos da boca não se estreitam naquela quina fechada qual sorriso de atriz de novela ou de modelo de sucesso, não, eles se encontram num ângulo bem mais aberto e gentil.
           Você também tropeça no vento e no barulho, e quase cai no vazio antes que eu te ampare, e se torce e gira e pula e corre e dança quase tão graciosamente como ela, mas talvez não com tanta naturalidade; pode ser um excesso de sua meninice; você é tão jovem, quase da mesma idade em que ela e eu nos conhecemos, há tanto tempo...
           Você teima e briga comigo do mesmo jeito, muda de tom do mesmo jeito, faz arremedos de minhas broncas do mesmo jeito; hoje você ia descendo a escada me imitando e foi como voltar a quase uma década atrás e vê-la outra vez no início de tudo, quando ela não mais se acanhava em querer me tirar do sério, após alguma declaração minha cheia de empáfia ou após qualquer movimento meu mais incomum ou qualquer coisa que lhe desse na telha, gesticulando à minha maneira e engrossando a voz.
           Quando te beijei pela primeira vez, ainda não tinha reconhecido tão bem os traços dela em você; mas agora são inescapáveis. Agora, quando te beijo, é difícil não pensar nela. Não é como dizem: que, ao beijar alguém, é tendência não pensar muito e esquecer outras coisas e pessoas. Na verdade, quando te beijo, é como o sucedâneo dos beijos dela que nunca tive, das mãos dela em minhas costas além dos meros abraços de amigos.
           Deve ter sido por tudo isso que cedi a seu apelo. O que há entre nós, entretanto, por ser assim tão falso, ainda que somente culpa minha, sim, culpa confessa, deve terminar.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

De nossos trezentos últimos encontros


Há quase dez anos, havia um canal de televisão que transmitia clipes musicais e notícias sobre jogos de videogame, e eu passava um bom tempo assistindo a essa programação que tanto me agradava. Foi nesse canal que primeiramente ouvi uma música de Los Hermanos chamada "O Vento". Gostei da gravação feita para o clipe, com uma câmera comum, e da letra da música, que não entendi, embora tenha achado interessante; decorei-a parcialmente nas poucas vezes em que vi o clipe sem, no entanto, me esforçar para memorizá-la perfeitamente.
Algum tempo depois, ao acaso cantei tal música estando junto a alguns amigos e colegas que usavam um computador da biblioteca do colégio, numa tarde após o almoço, ou antes, não sei. Não me lembro por que estávamos lá até aquela hora, nem quais eram os outros colegas; recordo-me, somente, de uma nova amiga e de como ela ficou encantada com eu conhecer essa música. Pediu-me até mesmo que a cantasse de novo. Sei, devo ter errado vários versos, mas ela decerto nem percebeu; no mesmo dia, fui procurar a letra a fim de a decorar corretamente, pois eu a cantava misturando palavras e significados.
A partir desse dia, seguiram-se vários nos quais ela me pedia que a cantasse, e aos poucos juntava sua voz a minha, primeiramente cantando os trechos mais fáceis de se decorar, depois arriscando outros e, enfim, cantando-a inteira. Confesso que fiquei admirado com o quanto ela gostava dessa música... tanto quanto fiquei admirado, posteriormente, com a sorte de eu tê-la ouvido ao acaso e memorizado alguns de seus versos para depois cantá-la casualmente naquele dia da biblioteca.
Éramos dois adolescentes sorridentes e sentávamos sempre juntos durante as aulas, após começarmos a nos falar – apenas algum pouco tempo antes de eu ter cantado a música, creio. Não a amei logo de início; nasceu-me até certa antipatia por ela quando entrou no colégio no primeiro ano do Ensino Médio. Paulatinamente é que nos fomos conhecendo – trago reminiscências de borrachas pedidas emprestadas, grupos formados aleatoriamente pelos professores, algum encontro estranho e cumprimentos atrapalhados nas esquinas dos corredores. Ela era bem magrinha e um tanto desajeitada, e não foram poucas as ocasiões em que me peguei a observar seu andar também magrinho e desajeitado. Certa vez debrucei-me no parapeito da varanda do alto apartamento onde morava um amigo nosso, que visitamos naquele dia, e fiquei a observá-la enquanto subia a rua em direção a sua casa; ela estivera conosco no apartamento – provavelmente estudávamos para alguma prova ou resolvíamos alguma tarefa escolar –, mas precisou ir embora porque iria fazer um sanduíche para seu pai; decerto já o deixara passar fome por tempo demais naquela tarde, pois saiu apressada. Conforme ela subia a rua, trajando uniforme escolar, inclusive o blusão, sendo que não estava frio, eu encontrava um pouco daquela música em mim, como cada vez mais encontrei durante os anos vindos.
Talvez isso tenha sido no segundo ano do Ensino Médio; não tenho certeza. Pode ter sido no início do terceiro, também. No meu HD antigo – irei consertá-lo, algum dia –, possuo registros de conversas de MSN que possivelmente poderão me ajudar a reconstruir a cronologia de minhas memórias dela, mas, por ora, as lembranças do colégio estão soltas desordenadas em minha mente:
Aquela vez, quando vendemos clandestinamente bilhetes de rifa pelo condomínio daquele mesmo amigo em comum anteriormente mencionado. Já aí eu fazia alguns esforços para, sempre que possível, estar com ela; e esse foi mais um esforço que deu certo, pois nosso grupo de amigos se dividiu em duplas com o propósito de vender os bilhetes, e minha dupla foi ela. Morremos de rir – ela, principalmente – naquele dia com uma mulher japonesa incapaz de nos compreender, e de mim, arriscando conversar em inglês com a estrangeira. Descíamos pelas escadas de incêndio do prédio, sentando por algum tempo nos degraus a cada dois andares visitados para ou descansar, ou contar o dinheiro, ou meramente rir. Quando eu não sabia o que conversar, apenas a admirava. Seu sorriso e seu riso, seus olhos, seu cabelo. Aquela vez, quando fizemos um trabalho de Biologia juntos. Deveríamos recortar cromossomos e ordená-los; desentendemo-nos um pouco. Todas as vezes quando eu passava pelo pátio vermelho após comprar meu lanche, procurando-a sentada a um canto com uma ou duas ou nenhuma amiga, a fim de passar por ela desatentamente, como se nunca me lembrasse de seu costume de ficar por ali, no patamar da antiga cantina – ela não chegou a conhecê-la, se meus cálculos estão certos –; era então, na hora do intervalo, que geralmente eu a cumprimentava, e suas amigas, antes de começarmos a sempre nos sentar próximos na sala de aula. Lembro-me de ela pegando ônibus no ponto em frente ao colégio, e como jogou, certo dia, estabanadamente, o bilhete único pela janela para sua amiga, depois de passar pela catraca; dessa maneira, economizavam passagens. Certa vez, flagrou-me observando uma goteira na academia aonde acompanhávamos alguns amigos que lá praticavam musculação. Lembro-me também das primeiras tardes em que comecei a acompanhá-la até sua casa, e de quando me ensinou um atalho para eu voltar à minha sem ter de percorrer um caminho bem maior. Após algum tempo, não adiantava nem mesmo eu fingir, com todo meu talento teatral, que a deixaria ir sozinha; ela somente ria e puxava-me para continuarmos caminhando. Eu teria perdido a conta de quantas vezes, mesmo depois de terminarmos o colégio, percorremos essas ruas – se tivesse pensado em contar. Vez ou outra, comprávamos um coco numa banca de frutas hoje inexistente. Conhecíamos cada detalhe do itinerário. Eu passava apertado por entre o muro de uma casa e um canteiro de coroas-de-cristo; não passar seria como não cumprir um dogma da religião de nós dois. Adiante no trajeto, pulávamos amarelinha nas pedras dispostas irregularmente num recorte da calçada. A regra era que cada dia um deveria pular e o outro, atrapalhar. De quando em quando, contudo, pulávamos juntos. Comecei a tentar encontrá-la de manhã, antes da aula, andando pela avenida no horário em que ela geralmente desembarcava do ônibus. Obtive um punhado de sucessos, que valeram a pena por todas as ocasiões em que continuei o caminho sozinho, vagaroso, na esperança de ela me alcançar, estando atrasada. Passei a chegar no horário exato da primeira aula na maior parte dos dias desde então, por me dedicar a tal empresa. Aquela vez, algum tempo antes de uma festa junina, quando os alunos foram convocados a dançar e ela disse que só dançaria se fosse comigo. Mas eu havia me recusado a participar da dança. Algumas semanas depois, porém, uma das moças que se havia voluntariado para dançar estava sem dupla, e decidi ser seu novo par... foi um erro cujo amargor ainda sinto forte. Eu não deveria ter dançado com aquela moça, e sim com ela. Aquela vez, quando fomos ao Playcenter, separados do restante da turma num ônibus com pessoas de uma série diferente da nossa. Jogamos Super Trunfo quando ela se enfadou da paisagem. No parque, na fila do Barco Viking, num hiato entre conversas, fitei-a distraidamente, até que seus olhos apanharam os meus a observá-la, e sustentamos o olhar por um breve momento. Dei-me conta de que ela era alguém que marcou minha vida até então, e que marcava naquele instante, e que marcaria dali por diante, sempre.
Após nos formarmos, nossos encontros, obviamente, se tornaram menos frequentes, mas ainda eram inúmeros. O que compensava era durarem mais tempo: tardes e noites inteiras. Ficávamos conversando no portão de sua casa, ou, algumas visitas depois, sentados na muretinha do pequeno jardim do lado de dentro. Hoje não faço mais ideia de sobre o que tanto conversávamos. Sei que nossas despedidas levavam horas e diversos abraços de adeus. Foi numa dessas ocasiões que ela me escreveu uma mensagem num cartãozinho – aparentemente destacado de uma cartela de algum caderno; não me lembro – com desenho de flores, no qual já estava inscrito “Viva cada minuto como um momento inesquecível”. Observo-o agora mesmo. A princípio eu o levava na carteira, até começar a temer perdê-lo caso me roubassem; desde então ele fica ao lado do monitor de meu computador.
Aquela vez, quando deixei de ir a um evento de inauguração do site de minha turma de jornalismo. Ligou-me a quinze minutos de eu partir ao tal evento, chamando-me para sair. Embora eu estivesse um pouco zangado com ela, por algum motivo esquecido, troquei o evento, no qual me esperavam, por sua companhia. Fiz cara feia no começo da noite, mera pirraça, mas depois nos divertimos e conversamos até de madrugada, quando voltamos andando pela Avenida Nova até nossas casas. Houve diversas outras noites nessa avenida, antes e depois. Aquela vez, quando fomos ao Ibirapuera e andamos de bicicleta. Ela atropelou uma ciclista, e ambas riram juntas, caídas. Que mais poderia eu fazer além de rir com as duas? Nenhuma se machucou, aliás. Quando ela estudava na São Joaquim, eu a visitei em vários dias, e vez ou outra combinávamos de nos encontrar no Metrô e ir embora juntos, pois ela saía da aula no mesmo horário em que eu saía do trabalho. E antes de trabalhar na empresa na qual então eu trabalhava, trabalhei numa banca de jornal na Avenida Cantareira, e lá ela me visitou algumas noites. Chegava uma ou meia hora antes de eu fechar a banca, e íamos embora juntos. Comemos muitas bombas de chocolate na padaria em frente àquela banca. Aquela vez, quando a espreitei sair de casa em direção ao ponto de ônibus e furtivamente aproximei-me tencionando perguntar-lhe, como uma pessoa qualquer, “neste ponto passam ônibus para...” – pretendia dizer “Santana”, mas tive de parar e rir, também, quando ela me reconheceu e começou a rir de minha brincadeira.
Tenho a impressão de já ter contado minhas memórias sobre ela um milhão de vezes através dos anos e dos blogs. Durante todo esse tempo juntos, constantemente cantamos a música, confundimos sua letra, discutimos suas ambiguidades e a extensão de seus significados. De todas as minhas memórias, talvez seja a letra e a melodia dessa música que reterei, se viver tanto, ainda a oitenta anos daqui, mesmo após esquecer meu próprio nome.
Numa ocasião, não sei exatamente quando, eu lhe predisse que nos encontraríamos, durante o restante da vida, apenas cerca de trezentas vezes mais. Na hora, foi apenas uma brincadeira. Quis apenas demonstrar minha insatisfação com a baixa frequência com que nos víamos. Lembro-me de que ficou um pouco irritada com a leve provocação escondida na estimativa. A partir de então, passei a subtrair uma unidade do total a cada vez que nos encontrávamos, e ao final do dia eu lhe informava a quantidade de encontros restantes. Passado algum tempo, parei de me dedicar à contagem, por algum descuido; entretanto, sei que o número de encontros restantes era de cerca de duzentos e cinquenta, um pouco antes de ela se mudar.
Fiquei sabendo da proximidade da mudança, primeiramente, por meio de sua irmã, com quem me encontrei por acaso no ônibus e que deixou escapar que “já estava tudo nas malas”; à minha pergunta sobre de quais malas estávamos falando, respondeu “ah, ela ainda não falou nada a você, né?”. Respondi-lhe que não. Mais tarde, todavia, acabei-me lembrando de que ela me dissera, algumas semanas atrás, ter algo complicado a me contar, e que estava se preparando para a façanha.
Na vez seguinte em que nos vimos, depois desse encontro com sua irmã, solicitei que me revelasse o tal segredo, que sua irmã quase deixara escapar. Abatida, disse-me que se mudaria. Ora, ela já me havia adiantado, uns meses atrás, que seus pais pretendiam se mudar – provavelmente para Vila Mariana, se não me engano. Portanto, quando me disse que a mudança seria certa, não fiquei excessivamente preocupado, e menos ainda surpreso; apenas entristecido pelo fato de que não estaria mais tão próximo dela e de que não mais percorreríamos tanto quanto antes o mesmo caminho de sempre, pelos pontos tão conhecidos nossos, a árvore macabra, o jogo de amarelinha, a banca de frutas... mas ela me disse que a mudança era para outro estado.
Até hoje cambaleio do baque. O que sobreveio dessa notícia se instalou em minha memória também aos recortes. Lembro-me de nossos últimos dias, de como fomos nos reunir com alguns amigos a fim de que deles se despedisse. Lembro-me de quando faltavam um ou dois dias para ela partir, e de que passamos a tarde juntos, não sei se com mais alguém. Ao final, já à noite, disse-lhe adeus e fui-me embora. Passei meia hora de inquietude em casa para enfim telefonar-lhe dizendo estar voltando para dar-lhe outro abraço – estava angustiado, ainda sentia em mim seus braços me apertando quando nos despedimos, mas atormentava-me a impressão de que o abraço que dei e as palavras que pronunciei não foram o bastante. Corri o caminho de volta a sua casa, talvez com medo de ela se evaporar ou porque não era capaz de simplesmente caminhar, sabendo que só por mais algumas horas ela estaria por aqui. Eu deveria viver cada um daqueles poucos minutos que sobraram como momentos inesquecíveis...
Cheguei esbaforido; ela me recepcionou com um semblante diferente do que exibia antes. Parecia abatida e desolada. Sentamo-nos dentro do carro de seus pais, ouvimos algumas músicas, só não me lembro se chegamos a ouvir Los Hermanos. Conversamos até alguns amigos seus chegarem, de carro; as despedidas dela continuariam madrugada adentro. Embarcamos no carro de seus amigos. Deixaram-me em casa.
Então ela foi embora, como o vento.
Isso foi há alguns anos, três ou quatro, acho. Visitei-a duas vezes lá, e ela veio rever São Paulo um tanto de vezes, também. Estas visitas de hoje, contudo, não são suficientes nem para dizer que minha estimativa dos trezentos últimos encontros foi realista; pode-se hoje dizer, na verdade, que eu tenha sido otimista, ainda que lá atrás no tempo eu quisesse ter sido o mais soturno dos pessimistas.
E mesmo que nos vejamos nestas poucas ocasiões, mais somos a nostalgia daquele tempo, dele nos lembrando em nossos rostos quase idênticos aos dos anos passados. É, a diferença entre o que éramos e o que somos está justamente aqui: antes fazíamos e agora apenas lembramos.
Escrevo com certa resignação, mas aceitarei o primeiro passaporte que me oferecerem para uma vida num universo paralelo onde ela não se foi para longe. Mesmo hoje, sua passagem em minha vida amplamente me atinge, seja pelas reverberações do passado, seja pelos devaneios do presente.
Vejo seu cabelo esvoaçando em todos os lugares. Em meio às milhares de pessoas que passam por mim todos os dias, ainda me sobressalto, vez ou outra, quando minha mente caçoa de mim, fazendo-me acreditar que a vi em alguma passante – isso, entretanto, hoje ocorre com menos frequência, admito, que no período logo após sua partida, quando dezenas dela sorriam para mim pelas ruas do centro de São Paulo. Penso nela quando escrevo e quando leio. Pois ela é o vento, puro e simples, e também seu barulho no trigo, chave da memória. E porque ela é linda, porque ela é meiga e sobretudo porque ela é a menina com todas as flores.