domingo, 30 de dezembro de 2012

No remoto deserto de Kaij


Há muito que já não mais distingo o tempo. O esforço é aflitivo e vão.
Caminho quase todos os dias através dos corredores e aleias e pelos níveis, vários, destas ruínas que um dia foram inexpugnável fortaleza, erigida por homens e deuses, quando nós caminhávamos lado a lado. Isso foi há mais tempo que pode a mente conceber, muito antes do ato que culminou nesta minha punição; apenas não sei se aqui estou há mais séculos que os transcorridos entre a fundação deste lugar e meu levante. As infinitudes de tempo se aproximaram desde que abandonei as medições.
Meus inimigos foram cruéis demais; mas eu castigaria com igual crueldade quem tramasse uma insurreição como a minha. Posso compreendê-los.
Quando me aventuro fora das ruínas, seres abomináveis se erguem das areias e surgem do horizonte do vasto deserto que circunda a fortaleza destruída. Desaparecem no ar assim que volto para dentro dos muros. Em certo momento, há mil vezes mil anos ou mais, enlouqueci e, a certa distância das muralhas, totalmente exposto, gritei desafios às odiosas criaturas, que não tardaram em emergir de suas submersas moradas em resposta à minha provocação. Enfrentei-os, então, por eras, armado de uma antiquíssima, mas poderosa, espada que havia encontrado perdida por entre os escombros, e com a qual achei que poderia destruí-los e escapar. Recordo-me que nela havia inscrições desgastadas à ilegibilidade correndo por toda a lâmina; certamente fora posse de vários heróis de outrora, hoje todos mortos e esquecidos. O sonho de escapar, contudo, já tinha sido previsto por meus opositores. Além de os seres jamais findarem, quanto mais me afastava das ruínas de Kaij, mais mortal me tornava e, portanto, mais necessidades e fraquezas mortais se me impunham. Antevi que ficaria cansado de lutar, sentiria sede e fome, calor e frio no clima adverso deste pedaço de mundo deixado ao oblívio, e pereceria.
Certamente outros prefeririam a morte ao eterno castigo; mas estes não são eu. Minha ira é demasiado grande para que eu desista da existência, e aumenta cada vez mais.
Nas entranhas desta construção abandonada há o verdadeiro lugar em que fui aprisionado, onde eu sou eu mesmo, imortal, indestrutível, terceiro em força entre todos. Trata-se não mais de Kaij, mas de um interstício entre as dimensões, o terrível Nada, em que todo meu poder, embora eu possa senti-lo fluindo pujante por todo meu ser, é estéril. Quando digo que meus inimigos foram cruéis, faço menção mais do que ao simples aprisionamento: refiro-me a terem interligado meu verdadeiro cárcere às profundezas desta construção esquecida e, principalmente, refiro-me ao artifício - criado por meu primo, cuja vida primeiramente ceifarei com imensurável prazer antes de todas as outras, quando eu conseguir me libertar - que mina meus poderes quanto mais me afasto da prisão entre dimensões. Quando ando por Kaij, sou livre, porém somente um homem; fortíssimo, mas um mero homem. Um excelente convite à loucura e ao ódio. Seria menos doloroso estar confinado eternamente apenas ao Nada. Mesmo assim, não sou capaz de não retornar às ruínas, pois aqui deve certamente haver um meio de escapar. Pagarão por este sarcástico capricho.
Vez ou outra vou ao torreão mais alto e observo os horizontes além do horizonte do deserto, graça atroz que me concederam meus inimigos. Vejo gerações de homens guerreando, conquistando, raramente gozando períodos de paz. Posso vê-los todos, nos diversos cantos do mundo, observar cada vida isoladamente ou a humanidade como um todo. Vejo também as interferências dos deuses e seus planos, e posso jurar que eles também podem me ver aqui, pois não é com pouca frequência que seus olhos encontram os meus, embora nunca tenham deixado transparecer quaisquer outras provas de que me observam - talvez com júbilo, ou pena, ou desprezo, ou indiferença; sei o que cada um deve sentir por mim, mas por todos sinto somente ódio.
Durante essa observação do mundo distante é que me apercebo de que o tempo flui além de meu discernimento. Aqui não há distinção entre noite e dia, ou talvez seja que ambos existam simultaneamente. Não há marcas no céu. Sua cor indecifrável é a mesma quando chove, quando o violento vento assovia por cada fresta entre as pedras dos maciços muros da fortaleza, quando o frio congela o tutano de meus ossos ou quando o calor evapora o líquido de meus olhos. Se volto para minha prisão quando o clima se faz torturante, o fluxo de tempo para em Kaij, apenas para aguardar meu retorno, a fim de que eu continue a sofrer como antes, de acordo com a vontade do clima e pela duração apropriada ao meu desespero.
Este lugar assombra o pensamento dos homens. Poucos se atreveram a chegar mesmo a quilômetros de distância daqui. Se eu ao menos pudesse atrair alguém para cá, eu poderia escapar, mesmo que na forma humana. Conheço o caminho para a morada dos deuses, esquecido pelos homens. Haveria uma chance de eu me libertar se liderasse um exército grande o bastante para ameaçar meu primo. Seria possível. Será.
Uma vez liberto, não falharei de novo; assassinarei todos os deuses e reconstruirei o mundo.

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O primeiro dia da longa e há muito esperada viagem finalmente chegou. Desde sua infância, o sonho de desbravar os Confins jamais perdeu a força. Obteve, a muito custo, documentos e mapas tidos como perdidos; duas vezes, inclusive, quase os pagou com a própria vida. Sua posse, ele a omitiu de todos até o momento de anunciar sua derradeira busca, para a qual arregimentou os mais fiéis e bravos amigos e guerreiros; mas apenas a seu filho, já um rapaz alto e robusto, segredou que ocultara documentos e mapas que há eras os sábios desistiram de procurar.
- Os homens temem os lugares destruídos pelas guerras lendárias e onde os deuses caminharam, filho. Eu, porém, sempre quis conhecê-los; sinto que pertenço mais às cidades antigas do que a todas as outras.
Com sua eloquência e carisma, havia conquistado já há algum tempo o favor dos intrépidos homens que agora o acompanhariam na longa jornada pelas áridas terras dos extremos do mundo conhecido, onde seres lendários e acontecimentos incríveis - alguns nem mais lembrados pelos contadores de história - supostamente existiram e aconteceram numa época distante no tempo.
Existe um sentimento sinistro, talvez causado pela extensa e desértica desolação que leva aos Confins, que sempre surge à mente dos homens nos limites do descampado de Nim, desencorajando-os e impedindo-os de seguir adiante. Talvez seja o temor de um poder ancestral e nocivo, talvez o simples receio de perecer no deserto. Para ele, entretanto, esse sentimento que a todos afasta é inócuo; pelo deserto sente só atração, como uma convocação à qual não pode declinar, e não apenas isso: seu maior desejo e ambição é conhecer aquela região do mundo olvida por todos. Aos poucos conseguira incutir em seus companheiros parte de seu entusiasmo, mais que o bastante para que rompessem com o naturalizado medo dos Confins e para que vencessem o angustioso sentimento que demarca a fronteira de Nim.
- Carreguemos os animais com os suprimentos - disse aos companheiros, apreciando o amarelado horizonte ao qual se dirigiriam. - Em uma hora, quero partir.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Vindouras, vindas e findas amizades


Sei que as pessoas aparecem e somem de nossas vidas e é impossível retê-las todas; o tempo não nos permite. Tentar sustentar até o final da vida todas as amizades iniciadas é utopia porque o tempo que dispomos para mantê-las vivas e interessantes vai-se tornando breve conforme novas amizades surgem. E há o trabalho, há o estudo, há a recreação solitária – pela qual, particularmente, muita estima tenho –, há o sono... não há tempo, simplesmente não há tempo para despender em amar todas as pessoas que gostaríamos de amar e da maneira como gostaríamos.
Acho isso bastante aceitável; no fundo, é mera questão de lógica. Leva-nos a selecionar pessoas com as quais desejamos conviver mais. A maioria de nós, acredito, prefere ter poucos e bons amigos a tê-los muitos e intimamente desconhecidos. Enquadro-me nessa maioria. Aceito plenamente que grande parte das pessoas com quem já gostei de conversar algum dia não mais converse comigo atualmente. Amei-as, sim, de certa forma leve e pacífica; e mesmo amando assim, apenas pouco, minha vida estará sempre marcada pela sua presença, ainda que passageira. Até vejo certa beleza nisso; porém somente se for dessa forma, com esse singelo desapego.
Aceito, também, mas só após muito contestar e brigar, que grandes amigos de longa data também saiam de minha vida. Vejo como uma seleção dentro de um período de tempo maior. Isso, contudo, é aflitivo. Porque eu quis amá-los para sempre durante todo este tempo; é diferente daquela primeira seleção, que tira da quase indiferença ou mero coleguismo alguém com quem se pretende construir uma amizade. Neste caso mais triste, que é como uma segunda seleção, tira-se do grupo de pessoas amadas alguém com quem não mais se conviverá como antes.
Portanto, pelos motivos que expus, não me apegarei, desesperadamente, a todos os sorrisos que encontrar durante minha vida. Algumas pessoas se afobam em manter um contato breve e raso com milhares de amigos e talvez jamais se sintam verdadeiramente unidas a alguém. Não vejo proveito nisso; chego a preferir quase o outro extremo.
Sugiro somente que não me hostilize quando perceber que não sou alguém que você tiraria da indiferença primordial, porque tal agressão é tola e risível e em nada me afetará. Só tornará você uma pessoa indesejável. Você não precisa tentar criar inimizade por quem não quiser amigo. Essa primeira seleção geralmente é indolor para os não selecionados – e, no meu caso, não causa o menor transtorno. Basta não demonstrar o intento de me amar.
O grande problema, como já disse, é a segunda seleção... e se você for me escolher para não mais me amar como me amou por todo este tempo, demonstre isso, diga-me pelo menos alguma mentira, diga-me que se mudou ou que vai se mudar para a Austrália, diga-me que não tem muito o que conversar, a vida anda numa monótona misantropia deleitosa e nela você pretende continuar, diga-me que você não tem tempo; isso, diga-me que não tem mais tempo, este que é o principal agente no cultivo da amizade, este que torna especiais as rosas e prazeroso o barulho do vento no trigo, porque assim entenderei que fui selecionado e saberei agir. Poderei tentar mudar minha amizade com você a fim de continuarmos amigos, se eu achar que me vale tanto a este ponto; mas, se eu contestar e brigar e ainda assim você me disser que não, saberei agir. Só não me esqueça à indiferença, tampouco me hostilize, porque aí, sim, vou me preocupar e me agitar e me desesperar achando que fiz algo de terrivelmente errado e danei todo o amor que tínhamos. Diga um sutil adeus; agora sabe que entendo você. Não tenha vergonha ou remorso; assim é a vida. Sofrerei e ficarei magoado, isso é óbvio, pois, embora saiba aceitar, não o faço levianamente. Rememorarei todas as nossas conversas e risadas, as discussões, os presentes, os olhares, os abraços, os encontros combinados e os fortuitos, a primeira vez que nos vimos; enfim, o momento quando nos selecionamos da indiferença... esta última é a lembrança de nossas vidas juntos que mais retornará à minha mente sempre que de você me lembrar.
Será ainda mais dolorido, e lutarei ainda mais ferozmente contra a separação, se você for alguém que desejei amar além da amizade; isso ocorre tão frequentemente comigo...
...mas, apesar de tudo, adorei tê-la conhecido, continuemos amigos ou não. E todos vocês.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Pastilha para dor de garganta

            Fui comprar um remédio para dor de garganta hoje à noite, depois do trabalho, antes de pegar o ônibus para casa. Pedi ao atendente que me indicasse onde estavam as pastilhas da marca X. Ele me apresentou três sabores que a marca oferece; eu, então, com grande discernimento e sempre buscando manter o raciocínio aguçado, detive-me ante uma necessidade de escolha aparentemente banal.
            Talvez meus atributos lógicos estivessem um pouco falhos após a leve liquefação cerebral promovida pela intensa e agressiva monotonia infindável do trabalho de poucas, mas exaustivas horas. Porque entre as opções havia o sabor framboesa (adoro o sabor de framboesa, embora não faça ideia do que seja uma framboesa, se vegetal ou animal ou mineral ou, sei lá, alienígena, ultradimensional, enfim, porque só o que comi com sabor framboesa até hoje foi gelatina de framboesa, e sempre que comi, gostei; por isso a framboesa tem todo este meu apreço, mesmo sendo-me uma incógnita completa, e vocês podem até me achar um tolo, mas não me incomodo) e o sabor menta (menta é um sabor extremamente comum para balas, e eu gosto bastante de menta, embora talvez nem tanto quanto framboesa, mas isso quanto ao sabor em geral, não pensando em sabores de balas, pois nunca havia comido balas de framboesa para dizer se gosto mais de uma ou de outra; se bem que também nunca comi gelatina de menta, o que invalida meu argumento anterior; mas na verdade o que importa é dizer que o sabor de menta provavelmente seria agradável porque cai bem em balas, ou pastilhas, dá na mesma), mas escolhi, após aquele momento em que me detive, durante o qual fiz certo tipo de reflexão cujos mecanismos obscuros até agora não atinei, justamente o último sabor:
            Mel-limão.
            É possível, sim, escolher a pior opção. Não me espanta mais o mundo ser como é. Nunca provei algo tão ruim. Jamais comprem pastilhas de mel-limão da marca X para dor de garganta.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O temor de perder alguém no vasto mundo; depoimento à amada

Por um momento desesperei porque achei que jamais veria você de novo; fui depressa aos registros do MSN antigo para tentar encontrar seu nome inteiro (confesso, não me recordo) em algum lugar, mas o que tenho de melhor de você – daquela época quando a conheci e quando você me disse que se casaria comigo, que deveríamos nos esforçar para nos encontrarmos e superarmos as dificuldades para nos amarmos como naquele arroubo nos amamos; sim, eu amei você, amei por pouco tempo, mas amei demais, demais... –, o que tenho de melhor de você está no HD do computador antigo, que está travado e que só com a ajuda de algum profissional em recuperar HDs travados conseguirei resgatar; guardo-o na gaveta de minha cama e espero algum dia poder ver novamente nossas conversas maravilhosas que lá tenho salvas, nossos diálogos sobre literatura e amor e paixão e nossos flertes adolescentes que facilmente me evolavam ao fértil mundo do sonhar acordado. Então foi quando pela segunda vez em poucos minutos desesperei, porque não encontrei seu nome, pois o que tenho no computador atual são só nossos frágeis últimos pedaços. As condições de nosso encontro foram tão fortuitas e acho que não conseguiria reproduzi-las jamais; eu poderia ter perdido você para sempre! Ainda mais sem seu nome, sem saber se você ainda mora no agitado litoral, minha única alternativa para reencontrá-la seria viajar para a outra ponta do país e procurá-la em cada casa, tarefa que me exigiria uma vida inteira e que quase certamente não daria resultado...
Em meio a este segundo desespero, lembrei-me de quando conheci você, puxando assunto numa enfadonha conversa sobre cultura; você falava com todos sobre tudo e sempre estava impondo seu ponto de vista – algo aceitável, porque o que os outros diziam eram baboseiras sem sentido e você possuía o domínio argumentativo típico das pessoas que não necessariamente passaram a vida inteira estudando, mas das que nasceram banhadas pela facilidade de adquirir conhecimento –, e eu, quando me atentei aos seus dizeres ("vamos ver se esta moça aqui, que fala sem parar, de fato, fala algo interessante"), desisti de todas as outras conversas e ignorei todos os outros: só tinha olhos para você. Esperei pelo momento oportuno de tentar uma aproximação, especialmente procurando por um assunto que eu também dominasse, para que você não me estapeasse psicologicamente logo de cara como fazia com todos os outros; não me lembro bem como foi que comecei a papear, mas, se não me engano, foi aos poucos, e fazendo comentários sobre as pessoas com quem estivera conversando antes: "eu estava aqui pensando em como deve ter sido duro para você ter de conversar com Fulano; que pensamentos arcaicos ele expôs!" – coisas assim, o que era tão tipicamente meu modo de agir, pois eu, como um bom recém-adulto, só queria mesmo era demonstrar minha aparente segurança  em que eu, é claro, ingenuamente acreditava – em relação ao domínio precoce das artes e da filosofia, mostrar-me o jovem prodígio incompreendido da tormentória capital paulista; em você vi meu reflexo feminino, e pensei: "que belo!". Sabe, naquele dia, se bem que acho que já lhe falei isto, mas naquele dia eu tive uma de minhas maiores crises de tédio e não sabia mais o que fazer com os segundos que escoavam, chorando sua preciosidade; aquele dia foi o acme do aborrecimento fastidioso que viera se instaurando em mim não sei por qual motivo nem por quanto tempo – mas é provável que tenha se iniciado com alguma decepção amorosa, sentimento em mim tão recorrente –, eu não conseguia escrever sequer uma linha de minhas incríveis histórias, nem uma linha de qualquer delírio, não tinha vontade de ler livro algum, nem de sair com pessoa alguma, nem de dormir, nem de ficar acordado, e lembro-me de desejar que eu pudesse me desligar até que o momento do tédio passasse; mas então me apercebi de que o tédio era produto exclusivamente meu, o momento não estava no mundo exterior e, portanto, seria congelado e descongelado comigo e de nada adiantaria.
Querida, amada, conhecer você foi minha redenção naquele dia, e fez-me acreditar que o acaso, ainda que comumente um louco espalhafatoso com pendores destrutivos, às vezes nos agracia com uma aleatoriedade que nos serve de maneira maravilhosa.
Então aqui estava eu, revivendo aqueles dias em que fui feliz, eu juro, fui feliz de verdade, e agora até lacrimejei ao jurar, fui feliz de verdade com você, ainda que nosso contato fosse pouco e distante; então aqui estava eu, parafusando nos motivos que me levaram a querer me afastar de você, motivos tolos, imbecis – que eu poderia superar! –, num torpor de recordações de seu rosto e de seu corpo – também me apaixonei por suas pernas, e sempre que você se levantava para ir à cozinha tomar uma água, eu não podia evitar olhá-las –, quando sobressaiu-me à vista seu e-mail. Sempre me esqueço de que é possível encontrar as pessoas nas redes sociais virtuais também por essa maneira.
É um novo momento de desespero colocar seu e-mail na ferramenta de busca, o temor por não obter resultado sapando-me numa preparação para me derrubar; revê-la pareceu-me, nesse instante, improvável e apenas um sonho de um bobo; entretanto, reencontrei-a. Esta parte de mim que é você não está, ainda, perdida para sempre de volta ao caos do mundo.
Vejo agora seu rosto gentil com maquiagem escura – aparentemente caracterizando alguma personagem de alguma peça teatral em que você atuou em algum momento, decerto posterior ao nosso vago adeus, de sua vida repleta dessa felicidade de quem sabe que nasceu para encenar, ou simplesmente de quem sabe que nasceu para determinada aplicação, seja qual for –, mas que por trás da maquiagem é exatamente igual ao que eu quase esqueci por um descuido deste coração que definitivamente não sabe amar, pelo menos não como deveria, como a maioria das pessoas; por trás da maquiagem tenho certeza de que seu sorriso juvenil e sensual ainda começa pelo canto esquerdo da boca de lábios carnudos que então se estreitam graciosamente, sorriso convidativo como seu piscar de olhos... conjuntos, faziam-me delirar. Por muito tempo, não sou capaz de parar de ver sua foto do perfil; descobri num átimo que sentia saudade demais de você.
Você ainda escreve encantadoramente, como quando a conheci, ainda parece alheia à sobriedade do mundo, ainda mora no mesmo lugar, mas não sei se ainda estuda o mesmo curso na mesma faculdade, coisa que fiquei sabendo numa das últimas vezes que falei com você; mas quanto tempo isso faz?
Esta corrida era só para não a perder assim de vista, porque acho que não vou conseguir me reaproximar de você, é quase impossível que voltemos a nos falar, nas últimas vezes mal parecíamos qualquer coisa entre conhecidos, amigos, pessoas que algum dia estiveram apaixonadas uma pela outra...
Talvez tudo isto tenha valido apenas para eu fazer, enfim, a derradeira confissão de meu amor por você – naqueles dias de namorados, era sempre você, Deborah, quem primeiro dizia que me amava para, só depois, eu dar uma vaga resposta, que era sempre comedida; este meu medo de revelar que fui atingido por Eros privou-a durante todo este tempo de conhecer a íntima natureza de meu sentimento por você, que só agora deixo aflorar.
Deborah, eu (não posso dizer simplesmente que a amei, o verbo no pretérito, como se nosso envolvimento fosse um mero quadro de anos passados e saudosos, porquanto isso seria apenas uma mentira conveniente que me ajudaria a amenizar minha consternação por não estarmos mais juntos) amo você. Ao final, este lugar-comum.

domingo, 18 de novembro de 2012

Oculta num pronome


Algo que lamento é não poder, ou achar que não posso, nem dever, ou achar que não devo, talhar seu nome em cada declaração que a ela faço. Porque, se pudesse, não haveria de metamorfosear meu amor num outro, inexistente fora de meus pensamentos, para escrever fingidamente sobre um eu inexistente num mundo inexistente em que amo alguém inexistente - alguém este mero fantoche em que retrato seu rosto, tenro aos meus olhos, e certamente ao toque, que ainda desconheço.
Já é hábito meu amá-la como se estivesse me dirigindo a outra pessoa. Mesmo sendo hábito, é difícil escolher as palavras certas para criar as mentiras constantes que escrevo. E suspeito que, sendo inteligente como ela é, de nada tanto disfarce adianta; ela já me desvelou há anos.
A pior parte é a contenção. Ter de escrever tudo com meticuloso cuidado, deixando aqui e ali pistas para a verdade e para a mentira verossímil. Desta forma, engano-a um pouquinho. Até que, algum dia, eu lhe revele: "durante todo aquele tempo, tudo que escrevi e disse era só seu, e cada mulher que fiz de conta existir era apenas uma fantasia em você. Agora vou editar cada texto, cada página de cada caderno em que escrevi meu amor por você pronominalizada em qualquer uma; substituirei todos os pronomes por seu nome; cada lugar figurado por um lugar em que estivemos (e estivemos em tantos...); cada beijo que lhe quis dar pelo primeiro beijo que lhe darei; cada mentira pela verdade correspondente. E reescreverei todos os outros textos, tolos, que escrevera antes de conhecer você; colocarei seu nome em cada predição de que a encontraria, pois eu sabia que a encontraria e fatalmente a amaria, e também sempre foi certo que depois de a encontrar eu teria amado você desde o limiar de minha memória, desde quando uma moça entrou na mercearia de meu avô e me viu andando para lá e para cá e perguntou meu nome e minha idade e eu disse 'Felipe' e estiquei três e depois quatro dedos da mão direita - fizera aniversário havia pouco tempo e ainda não sabia direito se tinha três ou quatro anos -, e fiquei meio envergonhado; ah, quando eu conheci você, desde essa minha memória eu já a amava! Antes disso, não me lembro... mas decerto também já a amava!"
Quando eu fizer a ela tal revelação, estarei sendo, terei sido, sou, fora, serei um sujeito feliz, feliz.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Para uma menina com uma flor

"Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.
E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara- na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.
E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor."


Vinicius de Moraes

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Interstício


Deparo-me com o essencialmente branco painel de postagem deste blog, mas não me sinto totalmente apto a escrever, ou com assunto suficiente. Durante o dia, agora que voltei a escrever, de qualquer reflexão sobre alguma trivialidade nasce um texto em potencial para o blog. E era mais ou menos assim, antes... tirando que, nos últimos momentos, que eram o ápice, de meus dias verdadeiramente criativos do passado, comecei a converter toda essa reflexão cotidiana em adendos às histórias que tinha em andamento.
Bem, lá vai uma publicação no estilo de diário, então. Hoje não estou muito para meu habitual arremedo de filosofia. Estou é cansado para reflexões sobre meus dias; mais ainda para escrever bem.
Gosto de tomar um copão de água, gelada por dois cubos de gelo - as garrafas de água de colocar na geladeira, aqui, têm uma tampa que me parece soltar ferrugem ou algo do tipo, então prefiro não tomar delas -, à noite, antes de dormir, quando já estou pensando em desligar o computador. Acabei de tomá-lo, na verdade. De uma vez só, como sempre. Engraçado é que vou juntando os copos aqui na mesa do computador, mesmo; de repente estão cá todos os copos deste tamanho e sinto-me bagunceiro.
Dia destes estive me perguntando se as mulheres feias costumam ou não perdoar Vinicius. Terão de perdoá-lo até quando?
A reorganização de meus livros nas prateleiras de meu quarto ficou formidável.
Acho que não estou sabendo escrever este diário.
Lembrei-me de Marino, ele é quem costuma usar essa locução verbal: "não tô sabendo". Se é que bem me lembro de ele falando.
Certo mesmo era que eu não estivesse aqui escrevendo tró-ló-lós para o blog e sim estudando. Meus deveres para o feriado são: finalizar a transcrição de conversação e tecer comentário; refazer prova de Literários, graça concedida pelo professor para amenizar minha nota burlesca; estudar para prova de Clássicos, que negligenciei durante todo o semestre; começar trabalho de Literários, que farei com Paula, e por começar quero dizer ler os textos teóricos com atenção. Ando desfocado. Pelo que me conheço, passarei o feriado inteiro tendo a impressão de que o pouco que estarei fazendo é bastante e de que estarei me empenhando e, semana que vem, passarei apuros.
Não tenho ido com a frequência que gostaria ao caratê. É uma de minhas atividades diárias em que mais me aplico, mas mesmo assim... minha frequência é, muitas vezes, quebrada por meus motivos tolos.
Outro dia, talvez segunda ou terça, eu estava caminhando com uma amiga pela estação Luz. Não sei quem disse algo engraçado, e ela deu uma risada mais alta que seu normal, que já é alto. Para ser sincero, não me lembro mesmo de como tudo começou. Sei que, nesse momento, forcei uma gargalhada muito escandalosa; tal gargalhada saiu muito gostosa, e eu simplesmente não conseguia mais parar de rir gritando maniacamente, e ela - talvez por necessidade, talvez por emulação ou meramente por simpatia - deu-se a gargalhar igualmente. Durante alguns segundos inteiros e longos eu retomava o ar para rir bem alto de novo. Senti-me muito feliz naqueles momentos... como se eu estivesse rindo pelo tanto que não ri nos últimos tempos, como se eu estivesse tentando me compensar pela taciturnidade em que me encontrava.
O professor de Clássicos chamou-me de maluco - sem saber. Disse que só um ou outro doido entrava para a Letras com intenção primeira de estudar e fazer habilitação em Grego ou Latim; segundo ele, geralmente quem faz tais cursos ou faz porque não conseguiu vaga na habilitação pretendida ou porque começou a gostar dos estudos clássicos durante o primeiro ano do curso. Vir de fora, entretanto, como eu, tencionando estudar Letras Clássicas, para ele, é raridade ou mera maluquice. Vejam só. Mas gosto dele, ainda assim.
Neste momento, meus pensamentos estão se desviando para uma pessoa em especial. Prefiro encerrar esta postagem estranha por aqui mesmo, antes que se torne mais um fútil enaltecimento do amor - que é, inevitavelmente, o que virá em alguns dias.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Parafuso e metal no passado e no presente e nunca mais


Ouvi um barulho metálico, breve e leve, entre os passos de usuários. Virei-me para olhar o chão e devolver algum objeto a alguém que o estivesse procurando; não havia nada visível, entretanto. Desinteressei-me e voltei a atenção para as catracas estalando freneticamente com um grande grupo de pessoas a girá-las; pessoas que vêm em ondas.
Passados alguns minutos, lembrei-me do objeto metálico caído, e resolvi procurá-lo, por motivo nenhum. Andando de maneira a varrer o chão com a incidência da luminosidade em busca de algum reflexo, gastei cerca de metade de um devaneio até que rebrilhou em prata um pequeno pedaço de piso: era meu metal, e a seu encontro fui, indolente, como se estivesse tão à toa trabalhando como num momento qualquer.
Era uma insignificante pecinha em formato de meia lua com um encaixe quebrado numa das pontas. O tesouro era esse. Alguém me chamou para perguntar alguma coisa; permaneci segurando a pecinha durante certo tempo e, quando ninguém estava olhando, chutei-a para um canto escuro ali próximo e voltei a atenção, outra vez, para as catracas.
Algo me perturbava a memória, alguma reminiscência que não encontrava a porta para a consciência. Olhei para o lado, para onde o metal fora depois de tê-lo chutado. Distinguia-o numa parte do piso mais escura - de sujeira grudando em sujeira por sabe-se lá quanto tempo. A memória, então, veio à superfície: lembrei-me de um parafuso pelo qual me interessei, certa vez, quando visitei o acesso bloqueado ao terraço do prédio de 13, 14, 15, 16, não sei quantos andares, onde trabalhei, no Centro de São Paulo. Naquele dia, após sair correndo daquele último andar - que era o do terraço bloqueado - vi um parafuso jogado nas escadas de incêndio (por onde eu subira até o bloqueio) e, por algum motivo que não consigo atinar, em meio à fuga, peguei-o. Quando já estava no 10º andar, ou em algum próximo, joguei o parafuso pela escada abaixo e, como vi aonde tinha ido parar, chutei-o pelo lance de escadas seguinte abaixo; assim repeti a ação por alguns andares, todos os outros 9, 15, 20 que me faltavam descer naquela hora de delírio.
Enquanto me lembrava disso, ia me aproximando do metal no piso da estação; sabia qual seria o resultado de meus próximos movimentos conforme me lembrava do parafuso. Seus destinos eram idênticos. Não havia força que me pudesse conter, nem mesmo a da razão. Chutei o metal mais para o canto sombrio.
O parafuso saltitava os degraus em direção a um lugar que não era o seu (mas eu sabia de onde ele havia saído? Não. Qual seria seu verdadeiro lugar, então?), cada vez mais deslocado de seu mundo e do lugar onde, primeiramente, estivera aparafusado - e foi importante que tivesse estado lá algum dia, dia este que se perdeu em todas as memórias. Enquanto isso, o metal corria pelo chão, longe de sua bolsa, de sua fivela, seja lá de onde fosse; longe de algum lugar em que foi importante que estivesse.
Mais para baixo. Mais para o canto. Ninguém os salvaria. Já estavam no 1º andar e onde as paredes se encontravam. No prédio, havia os sacos de lixo (nas escadas de incêndio, algo que sempre critiquei, porém sem resultado); no canto, um ralo e um buraco sem propósito no chão.
Vocês já sabem o que fiz, não sabem? Sim, fui cruel: afastei-os, sem possibilidade de retorno, do mundo que conheciam. O parafuso talvez tenha sido separado do lixo de plásticos e papelões em que o joguei; se o fora, provavelmente em seguida foi dispensado em algum canto do mundo ou levado a outro lixo. Mas, provavelmente, não. O metal, joguei-o pelo buraco, e não tenho a menor ideia de aonde tal buraco leva; mas sei que, provavelmente, vai ficar no lugar em que está até que as ruínas de Luz sejam examinadas por outra civilização - ou não.
Quando escrevi sobre o acesso bloqueado ao terraço, comecei a escrever sobre o parafuso também; mas eu ainda estava assombrado pelos fantasmas do prédio e não pude continuar. Acho que eu estava precisando, depois destes anos, de despedir-me daquele parafuso. Faço disto uma despedida do metal, também; assim posso esquecê-los.

domingo, 11 de novembro de 2012

Qual utopia?


O comunismo não é utopia. Utopia é acreditar na eficiência do capitalismo e que, se deixarmos que continue existindo, este é um sistema ideal para a felicidade de todos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

"O trabalho enobrece o homem"


Desacredito que o trabalho - da maneira como é hoje, intenso, ocupador de boa parte da vida - seja essencial para o homem, como um amigo meu certa vez disse. "O trabalho enobrece o homem", como dizem alguns; talvez os mesmos que tanto se aplicam em instilar ignorância nas pessoas para seus intentos mesquinhos...
Principalmente, desacredito na necessidade do trabalho para a manutenção das ciências e das artes. Explico. Disseram-me, certa vez, que, se o homem não trabalhasse tanto, se não se exaurisse numa árdua tarefa cotidiana, não teria incentivos para devanear com "coisas melhores". Somente desta forma, por exemplo, as grandes mentes artísticas continuariam surgindo: da necessidade de fuga de tal realidade. Se não precisássemos trabalhar tanto, o tédio tomaria conta dos homens e, cedo ou tarde, ruiríamos intelectualmente, abandonando as ciências e as artes todas, cedendo à preguiça e - isto não disseram, mas gosto de criar perspectivas exageradas e lúgubres -, por fim, nos entregando ao ocaso.
Entregarmo-nos ao tédio? Já não é o tédio, às escondidas, o que vivemos? Ou a agitação do mundo do século XXI não é mero tédio preenchido com futilidades? Damo-nos a inúmeras atividades tolas que preenchem o que resta de nossa vida que já não está ocupado pelo trabalho - e os estudos, hoje voltados quase totalmente para um futuro de trabalho, parecem-me, em grande parte, somente uma face deste. O que há para ser escrito ou pintado sobre o mundo de hoje? Todas as coisas, ainda, mas numa perspectiva de fugacidade de cada instante que nos parecia precioso antes de nos escapar... e nos escapa porque é mais proveitoso irmos às compras.
Já vivo naufragado no tédio. Recolho parcelas de felicidade durante meus dias em uma ou outra atividade que me agradam verdadeiramente; as outras coisas são só o tédio, rondando, espreitando, esperando por se fazer notar bem de leve, como o bater monótono de corações desmotivados e os cliques de catracas girando.
De que maneira o trabalho, como ele é hoje, eleva a alma, a enobrece, então? A uma arte triste, que contempla, melancólica, perspectivas aparentemente inatingíveis de conforto físico e mental e da opção de preencher o tempo livre com uma vida de verdade?
E tudo que gostaríamos de fazer, mas nunca faremos porque não temos tempo, e quando o temos, apenas o vemos passar?
E, mudando de assunto, hoje caiu na prova uma questão sobre digressão.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Mera despedida


Sentirei saudade da Aline porque, em diversos aspectos, ela tem um espírito semelhante ao meu.

sábado, 3 de novembro de 2012

Algumas explicações sobre ateísmo


Aos muitos amigos e colegas de meu Facebook que compartilham uma imagem que diz:
"Ateísmo: a crença de que não existia nada e nada aconteceu a nada e então nada magicamente explodiu por razão nenhuma criando tudo e então um punhado de nada se rearranjou por si só sem absolutamente qualquer razão em partes auto-replicantes as quais se tornaram dinossauros. Faz todo sentido."
Tenho alguns comentários a fazer para conversarmos melhor.
Primeiro: ateísmo não é crença; é ausência de crença. A quem acha que ateísmo é religião: não é, e não insista, a menos que queira passar por tolo; e se assim for, não há mais motivo para dialogar, porque seria o mesmo que dialogar com uma pedra. Ateísmo é não acreditar em deuses de qualquer religião, assim como em qualquer entidade divina e similares.
Segundo: ante o inexplicável, geralmente a pessoa escolhe uma das seguintes opções: 1ª - acreditar que há um ser ou forças conscientes por trás do incompreensível e 2ª - concluir que há aspectos da natureza que, sim, não podemos compreender com as ferramentas que temos e talvez nunca compreendamos, mas que isso não implica em haver um deus articulando tudo. A primeira escolha é feita pelos teístas; a segunda, pelos ateístas. Simplesmente isso.
Terceiro: ser ateu não implica acreditar em Big Bang nem em qualquer outra coisa. Ateísmo, novamente, é simplesmente ausência de crença em deuses. Dar crédito à teoria científica X ou Y para o início do universo ou da vida ou o que for é outra coisa. O que acontece é que a teoria do Big Bang é a mais aceita entre os ateus. E é, sim, tão igualmente incompleta e vaga quanto a explicação teísta para a origem de tudo. Só não possui seres fantásticos desejando e criando para lá e para cá.
Quarto: faz igualmente todo sentido acreditar no teísmo, não faz? A crença de que não existia nada, então um ser incrivelmente poderoso magicamente fez tudo existir motivado por criar seres humanos num planeta minúsculo num universo infinitas vezes maior que tal planeta, e então ficar observando como esses humanos vivem e selecionar alguns para viver em seu paraíso, mas só alguns: aqueles que tiverem um medo absurdo e inexplicável deste ser. Não... não faz sentido. Aliás, gozado, qualquer outra pessoa que levar uma vida fazendo o bem e ajudando os outros, qualquer pessoa que dedique a própria vida para salvar a vida de outras, se não acreditar nesse ser supremo, está destinado à punição eterna. De que esses deuses gostam, afinal? De puxa-sacos, parece. Observação: quem diz que esse tipo de pessoa, mesmo não acreditando em Deus, "tem Deus no coração e acredita sem saber, por isso está salvo", ah, por favor, vá tentar sua manipulação religiosa em outro lugar.
Quinto: algo curioso é que não há consenso entre os religiosos. Cada religião tem um deus que fez isso ou aquilo de forma diferente, e cada uma acha que é a verdadeira religião porque tem os milagres tais e quais, ou os personagens místicos Fulano e Sicrano... também há os que dizem que acreditam em Deus, mas não em religião. Que tipo de "salvação divina" essas pessoas podem esperar? O deus de qual religião vai salvar essas pessoas?
Sexto: por que é necessário que o mundo faça algum sentido ou que tenha alguma finalidade? Para mim, essa necessidade é só uma forma de fazer de conta que somos importantes de alguma forma, ou mais importantes do que os outros animais, ou ainda pior: que um humano possa ser mais importante do que outro porque acreditam que ele tem uma "missão" ou algo do tipo. Isso é só mais uma forma perniciosa de separar as pessoas.
Sétimo: todos os comentários anteriores novamente e reforçados.
Antigamente eu dizia que acreditava em Deus e que era católico só para não ficarem olhando torto para mim, e achava que era importante "ter uma religião" (a mais popular, é claro) só para não perder prestígio social. No final da adolescência dei-me conta de que não estava errado por ser ateu e não menti mais. Algumas pessoas (poucas, admito) se afastaram de mim quando souberam que sou ateu. Engraçado: nunca me afastei de nenhum religioso simplesmente pelo motivo de a pessoa ser religiosa. Religiões têm os mais intumescidos preconceitos.
Quem não souber debater e quiser só destilar ódio nascido da ignorância que fique à vontade para me desejar o inferno, ou o lugar de punição que seja. Isso é até comum. Mas, aí, não mais tentarei dialogar com quem utilizar esses vitupérios.
Acho que era só isso, mesmo. Estava cansado de ver, sem nada dizer, esse tipo de mensagem estúpida circulando.

Dinheiro, dinheiro, dinheiro!


"Nossa, meu, você é muito engraçado/criativo. Por que diabos você não vai ganhar dinheiro com isso, porra?"
Não, posso simplesmente ser engraçado/criativo. Que necessidade de ganhar dinheiro com tudo, até se peidar de um jeito diferente o cara tem de tentar ganhar dinheiro com isso.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

As incertezas sobre os destinos das cartas


Não sei se minha carta jamais chegou, ou se ela não a respondeu, ou se respondeu e sua resposta nunca me foi entregue. Se nunca me respondeu, fico a refletir em que errei. O que parece é que nosso contato quebrou-se por conta de um desses problemas.
Só o que sei com certeza é que sinto saudade de suas palavras...

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Paixão diária


Moça bonita para quem ensinei o caminho para Santo André, na estação, hoje: saiba que me apaixonei por você.
Quando a vi perguntando a outro usuário o que deveria fazer para ir até seu destino, já me senti aturdido com a emoção. Fui imediatamente em sua direção, e quando você se virou para mim, confesso, meu coração já era seu. Primeiro amei seu sorriso... não, não. Serei sincero: primeiro aproveitei para olhar e amar seu decote através de sua linda blusinha folgada e transparente enquanto você procurava o mapa da rede metroferroviária em seu celular. Mas depois, quando voltou seu rosto novamente para mim, não pude deixar de amar seus olhos detrás de grandes óculos, seu nariz delicado e seus lábios perfeitos, que desejei. Sua maneira de falar e compreender minhas explicações, seu sorriso simpático, que eu quis ter em todas as tardes de domingo sentados a um banco de pedra de alguma praça, seu caminhar ponderado; amei cada detalhe seu, amei toda a sua vida até ali, amei sua infância e sua adolescência.
Queria ter tido mais tempo com você. Quando você agradeceu e se afastou, vi que não foi exatamente na direção que indiquei, e entusiasmei-me com a chance de correr atrás de você para indicar o caminho correto e, talvez, propor-lhe namoro. Mas alguém me chamou e me distraiu, e quando olhei de volta para onde você ia, você já não estava mais em parte alguma.
Por que não disse tudo isso a você lá mesmo? Haveria uma chance, ainda que pequena, de que você aceitasse meu flerte. Então eu não estaria tão certo, como agora, de que nunca mais a verei.
E por alguns dias vou procurar seu rosto em todos os outros, porém, cedo ou tarde, o esquecerei, e a única lembrança que terei de você é a da pura beleza, e este devaneio escrito; mas naquele momento eu te amei intemporalmente, do início ao fim, entre os dois horizontes, da gênese ao apocalipse, do alfa ao ômega, num mundo hipotético em que nos conhecíamos e nos amávamos desde e para sempre. Eu abriria mão de Platão para ter você aqui comigo.
Adeus!

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Conclusões numa aula de Linguística


O capitalismo privilegia a aparência do indivíduo como soberano em relação ao outro, e ao mesmo tempo força uma submissão da imanência do indivíduo ao sistema. O sistema capitalista afirma as pulsões individuais sem negar a coerção social que exerce. Por isso, é tão seguro em seu domínio, tendo dado este nó no percurso gerativo do sentido. Temos impressão de estarmos libertos, sem o estarmos. A liberdade de dizer opiniões contra o sistema, inclusive, é prevista e está perfeitamente de acordo com tal nó.
Só os fortes entenderão (por completo).

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Pergunta do Orkut: "Como seria seu primeiro encontro ideal?" (alguém aí se lembra disso?)


Ah, essa é fácil. Após algum tempo num amistoso relacionamento, encontrar-me-ia com a amada para sairmos à luz da noite. Sob as árvores de uma praça iluminada pela lua através do limpo céu hibernal, sentar-nos-íamos num banco de madeira já desgastado e descascado pelo tempo e pelas paixões. Haveria um momento de hesitação, em que tentaríamos encontrar estrelas às quais atribuir significados e imagens, e veríamos as folhas sendo empurradas a esmo pela leve, porém fria, brisa que nos inculcaria desejo pela proximidade. Haveria o toque de meu braço nos seus ombros, e o do dela em minha cintura; então recostaríamos cabeça em cabeça e veríamos a lua, cheia de histórias de incontáveis gerações de amantes, que me faria dizer, aos ouvidos dela, versos de belos poemas; outras tantas palavras minhas que eu teria afiado durante as últimas semanas antes desse encontro; e ainda outras tantas que formularia no instante, improvisadas – e, decerto, mais importantes que as treinadas. Ela as ouviria, e tornaria o rosto um pouco para mim, ainda recostado ao meu, a fim de flertar-me idílio eterno. Eu, tomado por todas as inspirações românticas que uma alma pode espontaneamente laçar do éter em momentos como esse, quando toda a razão se esvai e não importam mais as intrigas internacionais e interplanetárias e quaisquer respostas sobre a vida, o universo e tudo mais, lançaria ao pé de seu ouvido uma canção; uma canção que não mais seria de artistas e plateias, nem só minha ou dela, mas nossa, uma música só nossa, mais que todas as outras. E quando ela ouvisse os versos que para sempre representariam nossa união, um último movimento traria seu olhar ao horizonte do meu e nos contemplaríamos as almas – não mais fugazes, não mais escapando pela curva por trás das íris –, rutilantes de paixão, no fundo das pupilas. Haveria sorrisos, no rosto de cada um, que só um beijo conteria e incorporaria para o outro. Haveria quem pudesse nos observar abraçados e apaixonados, mas sem nunca poder imaginar a intensidade do amor que fluiria entre nós. Haveria algum belo esquilo, algum pássaro insone a nos espionar, algum pirilampo luzindo seu reduzido universo; e só um talentoso artista seria hábil para notar e pintar, num retrato nosso, algum deles, tornando a cena ainda mais especial e mística. Haveria o piscar de alguma estrela morrendo e o de outra nascendo. Haveria, enfim, ainda, claro, o banco de madeira, as árvores da praça, as folhas dando cambalhotas, tocadas por Zéfiro, a lua soberana e a brisa do inverno; e seríamos nós parte daquela paisagem por aqueles minutos, como tantos já foram, como tantos ainda seriam. Um quadro estampado eternamente em nossa memória, absoluto em significado, forte contra todas as angústias da vida, sutil como todos os motivos do amor, indelével, intocável, lembrado sempre ao calar profundo das madrugadas e ao tocar de belas canções; vívido à recordação das palavras trocadas aos sussurros; quente, reconfortante; feliz, sempiterno.

domingo, 28 de outubro de 2012

     A quantidade de postagens explicitamente politizadas ultimamente está muito maior que a média para um blog devaneador, onírico, subjetivo etc. Será necessária uma cisão, caso continue assim.
     Meu receio de encontrá-la é o receio de que se aproxime minimamente da idealização, bem distante da realidade, que consolidei em meus pensamentos. Se se aproximar, corro o risco de tornar a enveredar por estradas demasiado sombrias.

Eleições municipais 2012 - São Paulo - SP

Fiz uma leve pesquisa agora, meio por cima, sobre as votações para prefeito em São Paulo desde 2000.

Votos nulos:
2000: 4,9%
2004: 3,8%
2008: 5%
2012: 7,3% (até agora)

Votos brancos:
2000: 3,4%
2004: 1,5%
2008: 2%
2012: 4,4% (até agora)

Abstenções:
2000: 15,2%
2004: 17,5%
2008: 17%
2012: 20% (até agora)

Eleitos: 
2000: Marta (PT), com 58,5%
2004: Serra (PSDB), com 54,9%
2008: Kassab (DEM), com 60%
2012: Haddad (PT), com 55,9% (até agora)

     Outro dia uma usuária parou para conversar comigo na estação e disse que prefere não ir votar e pagar multa depois. Como se poderia definir esse tipo de protesto? Aliás, como separar os que de fato não puderam votar com os que não quiseram? As abstenções cresceram 5% desde 2000. 20% dos habitantes de São Paulo não puderam ou não quiseram votar. Os votos nulos também aumentaram: 2,4%. Neste ano, 7,3% de eleitores se opõem aos dois candidatos do segundo turno. Também 4,4% votaram em branco, o que também vejo como oposição a ambos os candidatos (corrijam-me se eu estiver errado). Juntando tudo, mais ou menos, inclusive estimando que uma parcela das abstenções é protesto, uns 15% da população diretamente se mostra insatisfeita com os resultados das eleições deste ano. Acho, ainda, que alguns votaram no Haddad apenas para que Serra não entrasse na prefeitura, mas que, não fosse por isso, igualmente se oporiam ao Haddad. Pode ter ocorrido o inverso, também.
     Bem, estas foram minhas apurações... refletirei sobre seus possíveis significados.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Brahma e seu otimismo


Olha só o que tive de engolir junto com a janta de hoje. Brahma critica os "pessimistas" que reclamam do previsível caos no transporte na Copa de 2014. Dá uma ânsia tão grande assistir a esse comercial que fica difícil até exteriorizar minha reação. Pessimista? Só uma mente irrefletida consegue ser otimista e achar que a "festa" vindoura do futebol que a Brahma enaltece é de alguma forma mágica e proveitosa. Dizer que o transporte será um caos é mera constatação. Achar que será gostoso ficar no engarrafamento só porque estaremos em meio aos "incríveis" jogos da Copa é infantil e é um pensamento que só é capaz de surgir de mentes turvas como a dos grandes empresários que andam de helicóptero.
Este comercial é um tapa na cara disfarçado de carinho. A missão de idiotização preparativa para a Copa caminha a largos passos... há também uma propaganda da Volkswagen, de um Gol novo, que apela ao patriotismo futebolístico típico da maior parte da população do Brasil. Também é uma grande afronta à inteligência.
Essas empresas pintam a miséria de verde e amarelo e mostram os sorrisos efêmeros que a emoção de uma partida de futebol promove, mas esquecem que tais sorrisos são arremedos de uma felicidade da qual a imensa maioria do povo não frui de verdade.
Então, não especificamente à Brahma ou à Volkswagen, mas a todos os capitalistas malditos que se esforçam, herculeamente, diariamente, no corforto de suas mansões, em revolver o ideal de felicidade das pessoas e em tentar fazer da pobreza conformada uma meta: meus sinceros desejos de que estes comerciais imbecis gerem uma resposta contrária à esperada. Ninguém aguenta mais esse crime mental que vocês praticam. Vocês são homicidas de primeira linha e eu até evito me aproximar da televisão para não passar mais nervoso. Dá para ver seus olhinhos brilhando com a expectativa do lucro em cada palavra que sai do aparelho.
Deixem os trens e os ônibus explodirem de gente, mas deem futebol para o povo, não é? Coloquem o Ronaldo fazendo papel de Tio Sam, vai ser legal, não é mesmo? Dá vontade de vomitar.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O ausente


"...aqui foi no sábado. Eles trouxeram já as fitas e logo o Alcides vai descer comigo para colocar. Felipe, espera aí, queria ver com você uma coisa aqui... deixa eu entrar com minha senha. Quer ver, tava na parte de demonstrativos."
Um minuto.
"Sua matrícula, mesmo? Ah, sim, está aqui. Beleza, deixa comigo."
"E aí, Felipe? Nem tinha te visto, hoje. Vou te falar, hoje tá complicado. Ah, uma senhora que estava lá na área aberta..."
Dois minutos.
"...disse que não te via faz tempo. Te chamou de loirinho, demorei pra entender. Sabe que ontem à noite teve uma zoeira aqui, dos arruaceiros, e deu que..."
Três minutos. Sempre nesse ritmo.
Quatro minutos, e cinco, e mais, e a soma chega a quinze. Eu os vejo passar no relógio da barra da tela do computador. Acerto com baixa margem de erro o momento em que os números mudam. Entreouço o que me dizem e ouço o barulho do trem passando nas galerias abaixo, próximas. Sei que respondo uma ou outra coisa razoavelmente coerente, mas o domínio da conversa é sempre do outro, então não faz muita diferença minhas respostas parecerem pouco elaboradas. Hoje eu estou em qualquer lugar, menos próximo de mim. Penso brevemente num sorriso alheio, e sinto-me melhor.
Vou para os bloqueios. O tempo passa; calculo que ficarei muito tempo lá sozinho, pois alguns funcionários estavam indo embora. Tudo bem. Não quero me prender a essa gana por minutos preciosos e avidamente angariados que fatalmente escoarão, inúteis, junto ao fluxo de tédio nascido da abstinência mental de corpos puídos amontoados em bancos duros de um vestiário quente de um corredor infindável de salas monótonas e bicolores de uma estação de metrô.
Uma hora. Duas. Três. Quantas forem. Não me importo. Até gosto; é um tempo longo, e torna fácil pensar um pouco sobre ela.
A calça é da cor dos pilares, a camisa é da cor da monotonia e da ausência. Pessoas passam para lá e para cá; sinto um enjoo de marinheiro de primeira viagem com o movimento, pois estou balançando ao ritmo do fluxo. Aproximo-me de um pilar e nele toco com a ponta de um dedo das mãos cruzadas para trás, e não sei se está frio ou quente. Vou apoiando os outros dedos, a palma de uma das mãos. Sinto que a temperatura do pilar é minha própria. Isso me aproxima mais do concreto, como se este quisesse me abraçar. O vento bate-me no rosto com delicadeza, mas de qualquer jeito, e vem e volta de qualquer maneira. O barulho martelado dos tripés é caótico; mas parece haver um constante murmurinho, levíssimo, ao fundo de todo o ambiente, soporífero, convidativo...
Sinto-me parte da paisagem. Sou invisível para o mundo, mas o pilar me abraça e me reconforta. Descubro que o pilar sou eu, o murmurinho sou eu, o martelar sou eu, o vento sou eu, sou eu o mundo. Então o celular vibra com uma mensagem e essa sensação de integração termina.
É de um número que começa com 4000. Abro e descubro que, de tão importante que sou, um banco quer me conceder um cartão de crédito. Sinto-me tão especial quanto uma batata.
Observo os bloqueios como se fosse provável que algo surgisse das escadas para me salvar de minha própria implosão. Logo agora, um barulho de conversas chamou-me a atenção e ao olhar distraidamente achei que fosse ela; foi como um chacoalhão. Deixo tal impressão de lado sem esperar a confirmação de que não a veria descer do último degrau.
São oito horas da noite. Meu colega chega e vou embora, a passos arrastados. Sinto em mim um vazio como o da estação desabitada na madrugada...
Este vazio é como se ela tivesse passado a viver fora de mim. Ela, agora, habita o ambiente ao meu redor, não mais em mim. Portanto eu mesmo estou algures, procurando seu toque em cada brisa, seu frescor em cada chuvisco, sua voz em cada sussurro. Sinto-a em minhas respirações.
Mas o vazio lembra-me de minhas escolhas...
Não encontro ninguém no caminho até o vestiário, nem quando vou embora. É melhor assim. Embarco no trem. Vou a um lugar especifico, agora.
Amanhã volto a algures, como todos os dias.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Inventário


Primeiro foi J, num passado de memórias entrecortadas e vagos sorrisos alvíssimos pulando nos cantos da mente. Depois, D., quando comecei a me aventurar mais. C., que entrelaça todas as histórias. L. distante; D'., ainda mais distante. N., enigma ainda hoje. B. passou tão rapidamente que acho que nem deveria ter menção. Quase não me lembrava. Talvez não deva ter menção, de fato. Então por que não excluí esta parte de B.? Parece óbvio. Enfim, surgiu C'., nos momentos de euforia e iniciando minhas histórias de encontros aleatórios. D''. fez-me espantar com tais encontros; eles começaram a se repetir. Então S., sem nem esperar um pouquinho, promove mais uma vez um encontro intrigante na minha vida estranha.
Misturam-se todos, sem parar; remetem-me sempre a C., em fracassadas sobreposições. Mas C. está quase ruindo. Acho, aliás, que já houve a ruptura que sempre desejei.
Quero agora ser livre. Não quero mais abreviações.
Que será que são as abreviações? Acho que nunca as desvelarei.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

     Se ontem eu tivesse morrido, pensei, o pior seria nunca a ter beijado.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Gritar na almofada é uma mentira


Talvez eu parasse de roer unhas se pudesse gritar o mais alto possível de vez em quando. Mas onde, sem que venham acudir ou acalmar? Sem que se sintam perturbados e queiram que eu pare? Casa, avenida, ônibus, metrô, faculdade, treino, ônibus, metrô, trabalho, metrô, ônibus, avenida, casa. Quando estarei sozinho e poderei gritar? No treino, grito. Mas não grito como gostaria. O grito que quero dar não é compatível com o treino, e causaria transtornos. Não quero ninguém perto de mim, ninguém perguntando o porquê. É porque é e, para todos os outros, ponto final.
É grito de desespero por todos os anos e estes meses. Por um arremedo de felicidade.
E não é só gritar; pelo menos não no primeiro grito. É correr e me jogar no chão, bater com um galho em outro, chutar a terra, a água, socar o ar, pular, quebrar uma pedra em outra, e isso o dia inteiro, até me machucar ou desmaiar.
Os gritos seguintes podem ser só gritos. Por algum tempo.
Mas têm de ser gritos; não são gritos os que são abafados pela almofada.

Lembro-me de você, agora, como sempre...
Mas há quanto tempo? Dias ou anos? Pode-se calcular? E que seriam mais dez anos? Ou vinte, quarenta, cem... todos. Quando foi a última vez? Hoje? Quarenta anos atrás?
Qual a quantidade de você que existiu?
Quem é você?

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Fortuna


Vem-me ocorrendo de o acaso conceder-me mais encontros fortuitos ultimamente que em toda minha vida. Um, dois, três; já estou no quarto e acho que outro dia houve o quinto, mas não pude confirmar o reconhecimento.
No começo achei engraçado e oportuno; eventos tais que dão chances a emprestar do destino suas qualidades mais agradáveis para fazer gracejos.
Mas será que não vão parar? Já estou quase esperando o próximo, rapidamente esgotando-me do atual, cada vez mais os alimentando intensamente para igualmente abdicar de grandes esforços quando acho que de nada resultará o tempo aplicado.
Mais como uma coleção de realidades alternativas, em que só o primeiro seria o suficiente, e seria o ideal; noutra, o segundo; e adiante.
Tenho vivido esta rotatividade semelha a estas frases curtas, que não consigo muito prolongar. O pensamento longo tem parecido tão descartável, assim como a memória, assim como a fortuna.
Uma explosão de vontade e o súbito medo, desinteresse, desengano. Sou eu, passando veloz por mim mesmo e por meu maior desejo. Inadequado e inadequando-os.
E o texto é incompreensível porque quero sua compreensão só para mim, e que as tentativas de interpretação sejam embalde; contudo, quero leitores.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Lembrei-me de que tenho um blog... e publiquei qualquer coisa.


A noção de "valores" se virtualizou. Todos sabem o que é ética, respeito etc.; aceita-se o contrário de todos eles, entretanto, com apenas pasmo e trejeitos de suposta repulsa, mas... este é o fim do espanto. Levamos a revolta como quem veste, num dia ensolarado, uma blusa que, ainda que não nos faça suar de tão quente, incomoda. Constantemente, desde as margens de minha memória, ouço minha avó dizer que "Todo político é corrupto, em qualquer lugar do mundo" e que "É cada desastre que a gente vê... isso é a natureza revoltada com o ser humano. O ser humano judia, e a natureza se revolta", e ouço dizer que Fulano comprou mansão com dinheiro público, Sicrano viaja a passeio com dinheiro público, Beltranos envolvidos em escândalos e nepotismos. E todo mundo comenta, e fala, e xinga, e petisca uma carninha com farofa no quintal, e tudo bem, sempre foi assim, e sempre será. Essa indignação passiva está morrendo com cada avó, e inconscientemente estamos aprendendo que isso é algo natural. Não é!

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Após assistir a dois vídeos sobre Física no Youtube...


   Vídeos em questão, só por curiosidade (o assunto dos vídeos não tem relação direta com a postagem):

   Alguns caras que usam a internet com inteligência:
http://www.youtube.com/user/Tomishiyo (o dos vídeos em questão)

   O texto abaixo, que escrevi logo agora, eu o dedico aos "que passaram e passam em minha vida despertando-me aos poucos":


   Sabe por que eu quero ajudar a construir uma sociedade em que se prestigie a educação e o conhecimento? Porque acredito que esse tipo de coisa não deve ser negado a ninguém, em absoluto. E o que você falou em seu vídeo é só uma parte do todo, do infindável universo que temos por explorar e conhecer. Imagine uma sociedade em que as pessoas, todas as pessoas, possam debater sobre todas as áreas de conhecimento. Claro, cada uma tendo-se aprofundado em alguma área em especial; mas todas as áreas estão intrinsecamente conectadas (nem todo mundo hoje em dia percebe isso), o que permitiria a todos fruir de todos os conhecimentos possíveis num debate. Dá-me grande angústia perceber que isto que quero é quase quimérico. Acho horrível que a maioria das pessoas não possa se deleitar com o conhecimento, com os sabores da percepção do mundo que só uma mente livre pode provar. O universo é fascinante tanto em seus detalhes quanto em sua unidade. E o saber, a proximidade com os segredos do universo, mesmo que nunca os homens consigam tocá-los de verdade, é um deleite tão grande que, quanto mais aprendo, quanto mais conheço e mais vejo que tão pouco sei, mais me preenche um ambrosíaco sentimento de satisfação intelectual impagável. Ao mesmo tempo, menos consigo compreender como ainda pode vigorar o sistema homicida, vulgar, mesquinho em que vivemos. Sistema este no qual apenas um punhado tem acesso a este tipo de informação, ou pior, no qual muitos se tornam incapazes de compreender este tipo de informação porque lhes faltam condições adequadas ao desenvolvimento intelectual. Imagine quantos possíveis Einsteins morreram aos 10 anos de idade na esfaimada áfrica, ou quantos possíveis Aristóteles viveram tolhidos de acesso ao conhecimento, obrigados a labutar para suprir as necessidades fúteis de ignaros ricos. Isso tudo me açoita a alma. Não consigo aceitar que exista esse tipo de injustiça, e todas as outras; muito menos porque estou liberto de muitas das amarras que ainda prendem a maior parte dos humanos.

   Enfim, ótimo vídeo, Tomishiyo. Mais que fazer pensar apenas no conteúdo em questão, quem, ao compartilhar um conhecimento, consegue tocar o espírito de liberdade que existe em cada um e fomentá-lo, merece mais que um agradecimento. Espero um dia poder lhe retribuir de maneira condigna (e a mais um monte de vloggers, como o Yuri e o Pirulla, a quem assisto mais; mas também a várias outras pessoas que passaram e passam em minha vida despertando-me aos poucos).

sábado, 17 de março de 2012

Abre aspas da imaginação de Fernanda


Bem a um palmo de distância dos olhos de Fernanda, uma fina linha de luz, que viajara colossais distâncias desde o sol, resolveu passar. Ela se recostara a um poste, aguardando sua condução; ao ajeitar-se, percebeu que, se não se mantivesse no lugar de antes, aquele raio a incomodaria a vista. Estava presa a mais uma coisa.
“Nada como mais um dia. Um dia vazio. Outra vez vou trabalhar cheirando a cigarro. Meu pai e aquele maldito cigarro desde manhã. Só não fuma enquanto toma banho porque ainda não inventaram cigarro de plástico... e porque também é raro que tome banho. Ainda quer um sorriso quando vem me dar beijinho. Os dias de sorriso acabaram. Não sou sucedâneo do sorriso que ele perdeu da minha mãe. Ela já nem deve ter força nos músculos da cara, nem que quisesse mesmo sorrir.”
“Você também vai ficar acabada algum dia.”
“Nunca me entupi de drogas nem passei a vida inteira sem conseguir dormir direito.”
“Não é só assim que alguém se destrói.”
“Ah!, ótimo, ótimo. Discussão bipolar logo cedo, então. Se não fosse o Henrique ficar falando desses trecos de Psicologia e o escambau, talv...”
“Será que o que a Lica disse é verdade, que o viu com a Raquel na fila do cinema outro dia? Preferia não ter ficado sabendo.”
“... é, talvez eu não ficasse remoendo esse monte de dores a todo instante. Ainda, até terça que vem, tenho que pagar a mensalidade da faculdade... ah!, melhor planejar o que tenho para fazer por estes dias... Vejamos...”
“Devolver o livro de Sintaxe, não é? E pegar a habilitação; se tudo deu certo, já deve estar lá na autoescola.”
“Tem também a conta do cartão. E tenho que terminar aquela carta para o Júlio... espero que ele goste. Deverá gostar. A última, ele respondeu com outra tão extensa e alegre! Acho que gosto dele. Ah!, imprimir o trabalho de análise da palestra para amanhã! Será que dá tempo de passar em alguma lan house depois do trabalho?”
“Mas não era para o Gabriel terminar de revisar e depois ele mesmo imprimir?”
“Verdade, verdade.”
Fernanda contava apenas com o subconsciente para divisar a chegada de sua condução. O olhar, no horizonte da avenida, era de uma fixidez inquebrantável; afinal, não fitava nada do plano físico. Houve apenas um lapso na linha de pensamento, após o qual o fluxo passou a verter para questões existenciais, antes que Fernanda uma vez mais se visse num turbilhão de ideias.
“Eles mal sabem por que são, por que estão e por que vão. Olhe só: um bando de pessoas iguais, sonhos bobos iguais... e eu me sinto cada vez mais tragada por isso, e para isso. Só sei nomear isso vazio. Sinto cada vez mais distantes meus princípios – muitos dos quais já deixei de lado. Por que essa pressa? Por que essa necessidade tremenda de enriquecer?”
“Só para ficar mais feliz, lembre-se do ônibus lotado que está para chegar. Nada como começar o dia bem estressada, não? Não dá nem vontade de pegar o Tolkien da bolsa para ler.”
“Pior que não estou mesmo nem com esse ânimo. A gente já fica nervosa logo cedo. Já amanhece sem paciência. Quando tem um tempinho para si, uma folga, um fim de semana, não tem nem cabeça para descansar. Espera! Espera! Qual é aquele que ele está lendo? Vira um pouco, só um pouquinho, moço... Isso! ‘Comer...’”
“‘rezar, amar’. Não vou falar nada; nunca li.”
“Ah!, o ônibus, finalmente. Olhe essa roda, que enorme. Ó roda: símbolo do movimento.”
“Ah!, não, mas não mesmo! O bonitão chega depois de mim e quer entrar antes no ônibus? Não, não, pode subir depois. Isso, isso. É. Lá vou eu. Neste ônibus vazio.”
“É... não deixa de estar vazio. Está vazio de tudo que me interessa. O vazio. O Vazio. Bem, o mundo é mesmo vazio. Pontilhado de infinitas minúcias que pouco, muito pouco o preenchem.”
“Fico imaginando se a consciência e o raciocínio são dádivas benignas ou malignas.”
Fernanda se recostara a uma das lâminas – a esquerda – da porta do ônibus, pois fora a penúltima a entrar; mais para dentro, não havia espaço algum. O “bonitão” estava recostado à outra lâmina – que não se abriria durante o acidente que viria.
“As dádivas que agraciaram Tolkien só podiam ser benignas, contudo. Só uma mente brilhante, dedicada e culta para recriar toda a história do Universo como ele fez. Só alguém muito inteligente para conseguir transcrever a imaginação pelágica do pensamento. E as palavras, as lindas palavras! Uma pena que o mundo transpareça a evidência de que todos os Tolkiens morreram.”
“Queria tê-lo conhecido. Por tão pouco! E pensar que ele esteve sobre este mesmo chão há menos de quatro décadas!”
Fernanda pensava na falta que sentia desse homem que nem conhecera, exceto nos livros. Um carro, enquanto isso, a alguns quarteirões, dirigido por um bêbado ensandecido, vinha correndo com o dobro da velocidade máxima permitida na via. Se encontrariam, este e o ônibus, num cruzamento a três quadras dali.
“E tantos outros já versaram sobre o Desconhecido! Matéria para eterna prosa e poesia, o Universo. Ele existe ou não existe, afinal? Se tem começo e fim, e se estes surgem do nada e caem no nada, no Vazio, existe; mas e além? Afora isso, e se não houvesse seres conscientes para pensar no Tempo, no Universo, no Vazio; ainda todos esses existiriam? Todo o Universo não passaria sem ser notado por nada, sem existir, enfim? A existência concreta não acontece apenas através da consciência de seres inteligentes?”
“Faz todo o sentido. Aliás, não faz sentido nenhum, exceto superficialmente; há uma resposta, sim, que é: o Universo não tem sentido. Se parássemos aí, tudo ficaria bem. Mas nunca pararemos. Eu não vou parar. Será que são muitos os que pensam assim?”
Fernanda se abstraía facilmente, sempre com suas duas vozes dialogando mentalmente. Uma interpolava, completava, indagava, discordava da outra.
Ela então perguntava a si mesma qual seria realmente o motivo da vida instantes antes de se dar conta, no momento em que o carro batia na dianteira direita do ônibus quando este fazia uma curva veloz para a esquerda e a folha da porta na qual Fernanda estivera recostada se abria, atirando-a a vários metros em direção a um poste, de que estava num acidente terrível.
Sua consciência ainda a fez sentir a dor das costelas quebradas e da coluna prensada, mas o imediatamente posterior choque de sua cabeça no poste deu às suas memórias, princípios, certezas, incertezas, alegrias e tristezas eterno oblívio, espalhando tudo que fora Fernanda despedaçado pelo chão da calçada. Inclusive Tolkien, que voara da bolsa entreaberta contra a guia, quase partindo sua brochura em duas.

Fecha aspas da imaginação de Fernanda.

“... Nossa!, por um instante quase senti que essa morte inventada era de fato a minha verdadeira! Sonhei acordada, agora!”
“Depois de ficar imaginando essas coisas, não vou mais pegar ônibus se for para ficar recostada à porta. Muito menos à lâmina esquerda. Devia ter deixado o bonitão entrar na frente, afinal, na elaboração dessa quimera. Talvez surgisse um final menos macabro, assim. Fernanda, às vezes acho que você deveria colocar essa sua imaginação fúnebre no papel. Muitos de seus devaneios dariam bons contos.”
“Será que o pessoal não vai dar uma chegadinha mais lá para o fundo?”