segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Diálogo com a Voz

     - Estou com uma vontade desesperadora, maníaca, assassina de dar o murro mais forte da minha vida neste teclado.
     - Faça.
     - Algo me impede.
     - O quê?
     - Falta de dinheiro para comprar um novo. E mais coisas. Medo inconsciente de me ferir, medo das consequências, da impressão que vai causar. E outras pessoas precisam do teclado. E eu preciso dele agora. Para escrever.
     - Escrever o quê?
     - Sobre o fiasco que sou. Sobre como sinto que meus óculos sempre estão tortos e que não moram em minha vizinhança as pessoas que eu quero. Sinto-me mal, completamente enojado de mim, por me render à necessidade de escrever cada pensamento. Sinto-me mal por não reconhecer inúmeros erros que cometo. Mas continuo.
     - Por quê?
     - Algo me impele.
     - Que algo?
     - Milhares de pensamentos bem elaborados. Miríades deles todos os dias. Infinitas teorias que ninguém nunca sonhou. Elas circunvagam em minha mente, me levam à loucura. Mas à loucura comedida. Cada centímetro meu me odeia por isso. Cada centímetro meu quer rasgar o próximo em milímetros, mas se contém.
     - E sua mãe agora aparece para te dizer sobre uma caixa de plástico. Seus pensamentos se desviam sozinhos, por nenhuma influência externa, mas recairá na caixa de plástico a culpa pela sua distração sobre o que escreve agora.
     - Sim, e, neste instante, eu odeio a caixa de plástico e ponho nela a culpa. Gosto muito de minha mãe e de outras pessoas, mas hoje não.
     - Hoje você está completamente nervoso e mal imagina que absurdos cometeria se as circunstâncias fossem outras. Se fossem só um mínimo diferentes.
     - Quase chego a desejar que esse mínimo de diferença fosse o que me levasse a ser um torcedor fanático e irresponsável de algum time de futebol, que fosse o que me lançaria em brigas de bar e de rua. Mas... sei como sou. Se fossem outras as circunstâncias, eu estaria desejando viver numa realidade à distância de um mínimo de diferença nas circunstâncias, desejando viver nestas em que vivo. Quereria transformar meus delitos físicos em impressos.
     - O que te desequilibra tanto, afinal?
     - Não sei, devem ser muitas coisas. Sinto que me faltam calos nas mãos, uma cicatriz transversal em meu rosto. Sinto que me falta algum domínio sobre qualquer coisa. Sinto que me falta alguém. E tenho dores de cabeça cada vez mais frequentes. Uma agora, inclusive. Ouso acreditar que é pelo ato de pensar exaustivamente, profundamente, hiperbolicamente, sobre tudo. Até a mim pareço presunçoso, entretanto, ao tecer um comentário desses.
     - E falta tanto ainda para que você exponha todos os seus temores e angústias! Faltam-lhe as palavras. Elas te odeiam, elas de você fogem, seu vocabulário sempre será forçado, você se destruirá em autocrítica. Você não nasceu para isso. Você é ótimo em não ser nada. Em estar envolto por mil portas de possibilidades e se manter indeciso. Para sempre.
     - Sempre temi que fosse isso. Acredito ter entrado por uma dessas portas, mas sei que a seguro aberta com o calcanhar. Vejo as perspectivas. Vejo o que há na nova sala da porta que abri, e fico tentado pelas outras da sala anterior, mesmo as desconhecendo. Gozo um mínimo do máximo que poderia obter se soltasse a porta, e tenho a segurança de ainda poder voltar atrás. Sou completamente ridículo.
     - Você é.
     - Este meu pescoço que não estala como eu queria! E meu peito; sinto ainda aquela dor.
     - Não acha que te fará mal continuar como é? É uma grande irresponsabilidade seu descuidado consigo porque há pessoas que, por algum motivo inexplicável, vieram a gostar de você. Aliás, como conseguiu? Quem imaginaria que faria amigos e amores neste mundo?
     - Isso começou a ocorrer antes que eu pensasse sobre o assunto. Talvez eu tentasse evitar, se soubesse antecipadamente. Eles surgiram! E me agradam, e me dizem que os agrado.
     - Nunca desconfiou de que possam ser robôs programados para te aturar?
     - Algumas vezes, confesso, sim. Um resquício de dúvida ainda arde. Espero que meu próximo momento, a próxima fase de minha vida, seja no qual vou compreender que tudo isto, todos estes pensamentos ignominiosos que formulo, não passou de uma leve crise. Não, leve não; moderada, talvez... ou até intensa. Não sei, pode ser que amanhã alguma outra catástrofe ainda piore tudo.
     - E como se sente sabendo que ficará um tanto mais calmo quando revelar este documento, pelo qual confabulamos, nas páginas virtuais que tanto abomina?
     - Pois é, sinto-me e continuarei me sentindo mal. Tanto quanto como quando começamos. Talvez ainda mais. E a dor de cabeça está piorando. Não sei até onde o corpo aguenta. Tem gente que diz que problemas emocionais acabam gerando os de saúde.
     - Por que não toma um remédio?
     - Não quero me render. Não, pelo menos a alguma coisa não; que seja uma dor de cabeça, pelo menos a de hoje. Não, já me rendi a tanto, por motivos tão banais. Eu não quero mais me render. Não quero mais renunciar. Mas, você sabe...
     - Sei. Sei que você só é heroico através deste texto. Só é líder de sua vida enquanto em frente ao monitor do computador ou debruçado sobre um papel em branco.
     - Só pode ser uma maldição, uma sina.
     - Espero que você encontre outros com o mesmo problema.
     - De que adianta! “O mesmo problema”, você diz! Como se, mesmo sob infortúnio similar, outro indivíduo estivesse se sentindo mal da mesma forma! Como se a complexidade de meu raciocínio, moldada por anos de inúmeras experiências totalmente distintas às de quaisquer outros seres, por mais que possam eles parecer vítimas das mesmas circunstâncias, pudesse ser medida por parâmetros científicos, por algum tipo de estudo absolutamente segregado e restritivo ao qual embutirão o sufixo “logia” ou pelas deduções de algum patife metido a intelectual!
     - Nunca poderá se provar qual o pior dos delírios. Crê ser o seu?
     - Não. Ainda não. Ainda sou muito contido. Ainda me falta aquele mínimo, ainda me falta estar do outro lado.
     - “Take me to the other side”, não é?
     - Este não é o momento para músicas. Pelo menos não para essa.
     - Você entra em conflito com sua própria filosofia. Não era de musicalidade que queria rechear suas obras?
     - Esta não é obra minha.
     - Não?
     - Não estava falando de nosso diálogo, caso tenha entendido isso do último comentário.
     - Não me cabe acompanhar a linha de raciocínio que sugere, então.
     - Por que não?
     - Sou eu quem faço as perguntas, lembre-se.
     - Pois não mais as faz.
     - Tem certeza?
     - ... Você ainda é mais forte que eu. Pensei em como inverter os papéis, mas não pude. Ainda sou incapaz.
     - Você é patético. Muitos já me derrubaram e dominaram.
     - Você desconhece o vulcão submerso que ainda vai te desestruturar e destronar completamente. E esses que te venceram não terão vencido como vencerei.
     - E você acredita ser esse vulcão. Menos que isso, aliás: torce para que seja.
     - Esta conversa tomou maus rumos. Eu estava invocado; agora, além disso, estou confuso.
     - Seu coração é arrítmico.
     - Sim, às vezes o sinto acelerando um pouco, descompassando. Mas é uma sensação irreal; é reflexo de minha inconstância psicológica.
     - Algum dia, quando liberar toda a vontade de quebrar teclados que reprime e agrega, você vai cometer algum erro terrível.
     - Não sei se temo ou se anseio por este dia.
     - Parece até que essa sua dor de cabeça é algum pensamento que se congestionou e quer irromper de sua estagnação com a mais avassaladora das razões.
     - Sim, é ele. É o derradeiro pensamento, o apogeu de minha filosofia. Estarei o aguardando até o ocaso de meus dias.
     - Que valha a pena da espera.
     - Acabo de revisar este texto.
     - Consultou o dicionário?
     - Sim.
     - Quantas vezes?
     - Uma meia dúzia. Talvez, uma inteira.
     - Errou alguma palavra?
     - Uma vez coloquei um “conquanto” indevidamente. E, noutra, apliquei a palavra “incutir” quando o certo era “imbutir”. Por uma letra! Errei pela seguinte do alfabeto. Valer-me-ia nove pontos num tiro de arco e flecha.
     - Se fosse como disse, seriam duas letras. O “n” virou um “m” antes do “b”. Mas o correto mesmo é “embutir”. Três letras.
     - Sete pontos, então. Obrigado. Já fui lá arrumar.
     - Alterou muita coisa no texto, com a revisão?
     - Não muitas.
     - Mudou alguma fala minha?
     - Acho que sim, mas não excluí nenhum pensamento. Mudei mais as minhas, mesmo. Aquela da sala com as várias portas, por exemplo. Deixei menos ridícula. Tanto quanto possível.
     - Deve ter sido difícil. Aquela analogia foi simplória ao extremo.
     - Ainda acho que foi necessária.
     - De qualquer forma, fez um bom texto. As pessoas vão gostar.
     - Sim, vão. Geralmente gostam. Eu não as entendo.
     - Será que você fará novos amigos com isto?
     - Amigos, exatamente, não sei. Queria mesmo era que alguém em especial lesse.
     - Acha que vai?
     - Pare de me forçar a usar constantemente a expressão que mais repeti durante todo o diálogo. “Não sei”.
     - Por que você quer que a pessoa em questão leia?
     - Não sei.
     - Previsível.
     - Ardiloso.
     - A dor de cabeça, ela persiste?
     - Sim, mas se amenizou.
     - Você ainda precisa revisar a parte que veio vindo depois daquela em que disse que revisou o texto.
     - Acabo de o fazer. Uma única consulta ao dicionário, desta feita.
     - Qual palavra?
     - “Analogia”. E ainda tenho dúvidas.
     - Logo numa frase minha?
     - Desculpe-me.
     - Sem ressentimentos. E é aqui que nos despedimos, não?
     - Sim, antes que se exija nova revisão.
     - E só de pensar que tudo isto foi consequência da atitude daquele motorista de ônibus que encrencou contigo...
     - É. E deve ter sido por consequência da eliminação do Brasil da Copa, aquela atitude.
     - O mundo gira por motivos estranhos e escusos.
     - E um deles é você. Adeus.
     - Ah! Agora você me pegou! Gostei!
     -
     - Ei.
     -
     - Ei, você ainda está aí?
     -
     - Foi-se! Deixou-me sozinho! Como pôde? Tratante!
     - Calma, fui apenas fazer uma última revisão. Só alterei dois ou três pronomes, agora. Sabe que não resisto. Agora, tchau.
     - Tchau.

domingo, 26 de setembro de 2010

Súbito descontrole

     Não é possível. Não pode ser possível que eu tenha que passar metade do meu dia num inferno de trabalho, fazendo serviço triplicado, sem uma única pausa para alguns minutos de descanso além do horário de almoço, para então chegar em casa tarde, sem poder praticar minha música porque posso incomodar os vizinhos. Tenho, seja como for, que ficar ouvindo miríades de coisas que não me interessam ouvir quando chego cansado e querendo momentos para introspecção – e, se fosse só ouvir, tudo bem; mas, tenho “obrigação” de pensar a respeito, de ter ideias para planos que não são meus. Não tenho tempo nem para pensar nos meus próprios ideais! Cada partícula de inspiração me é tirada para finalidades diversas e alheias; e o que ganho? Um cisto no pulso, para me impedir de tocar guitarra. Pesadelos – pode parecer ridículo, mas ocorreram – com clientes taciturnos me olhando feio através do breu de algum aposento da imaginação onírica e me empurrando suas fichas para que eu os atenda de uma única vez, e se desrespeitando uns aos outros e exigindo minha mediação em seus conflitos egoístas.
     Não consigo ler meus livros. Todo tempo que consigo para tal fim, nunca me encontro sozinho – só se eu fosse para lugares distantes, o que, para uma solução cotidiana, imediata, é impraticável. Escrever algo substancial, neste estado, então, quase nem cogito; meus textos estão criando aranhas. Só consigo escrever isto neste átimo de descontrole porque só assim consigo me acalmar. Queria mesmo era quebrar a louça e o armário e gritar palavrões impressionantes.
     Mas, não posso. É mais de uma da madrugada. E, ora, o Felipe? Não, o Felipe nunca perde o controle. E se sente culpado até mesmo por ficar uma hora inteira bufando, em um raríssimo ataque de nervos, se espreguiçando e se contraindo e abraçando os móveis da cozinha. Sente-se culpado por ter chegado a este ponto, sente-se culpado por não conseguir dar atenção às pessoas de quem gosta, e também se sente culpado por ter dado liberdade demais para que pessoas de quem não gosta exijam sua atenção.
     Fico planejando dar um basta, mas também me sentiria culpado.
     Este é um relato em tempo real. Estou tremendo. Mas, mais calmo. Vim me deitar. Quando começou, há uma hora, estava num misto de tédio e aborrecimento tão profundos que não havia nada que eu pudesse fazer que não me irritasse mais. Comer, ler, escrever, dormir, ouvir música; nada. Ficar parado e odiando todo o teor da existência era a única forma de não implodir. Mas, aí veio a obrigação de me movimentar, de pegar meus óculos do chão, de comer. Foi então que fui à cozinha e repuxei a camiseta para esticá-la pelo rosto e cobri-lo. Estava frio, e fiquei com o torso a descoberto por um bom tempo antes de percebê-lo.
     Fiquei pensando. Como me desgasta esta cidade imunda, cheia de animais, que se dizem homens, nojentos. Sobre como coisinhas lindas e cheias de afeto atribuído são execráveis nestas horas, tais quais um monte de fitinhas coloridas que tenho numa caixinha, um boné, uma xícara com uma careta desenhada etc. Queria pôr fogo nisso tudo, quebrar, estraçalhar. Mas, e o afeto? Por que atribuímos valores sentimentais às coisas, que nos impedem de destruí-las?
     Fiquei pensando. Sobre como queria estar em outro lugar, com determinada pessoa, em outro século – distante, num tempo bem passado, quando ainda boa parte do mundo era um mistério e a cartografia era um ofício de novidades constantes.
     Fiquei pensando. Como, de qual maneira ainda posso querer estudar, se sem isso já estou assim? Onde haveria tempo necessário para todas as minhas opções e obrigações?
     Fiquei, além disso tudo, pensando sobre a significância de meu desespero. Todo dia, quando vou trabalhar, vejo pessoas que talvez não se lembrem de seus próprios nomes andando descalças pelas ruas imundas do centro. Quando penso nelas, sinto-me ainda mais culpado por ficar angustiado com meus nobres problemas. Imagino moralistas me dizendo “Você tem sorte de poder trabalhar, mesmo que se desgaste nisso!”, “Sorte sua ter um móvel dentro de uma cozinha também sua para ter vontade de esmurrá-lo”. Mas, dentro de meu próprio contexto, tenho, sim, direito de me angustiar.
     Agora, estou mais calmo. Amanhã, arrumarei este texto todo e publicarei. Agora, vou dormir. Deixei coisas a fazer. Mas não me importo nem de relembrar quais são. Amanhã, amanhã. Hoje, já estourei. Exauri-me. Já terei dormido, acordado e revisado o texto no próximo parágrafo.
     O que de fato aconteceu; o eu das linhas acima é parte de um bloco de espaço-tempo que já passou. O texto já não contém todas as partes originais, como também possui trechos novos, adicionados pelo eu presente. Estou sob meu domínio novamente. Mas, nada mudou. Tive alguns segundos para tocar minha música depois que cheguei, hoje. O pulso, aliás, ainda dói. Hoje, pelo menos, não houve muitos conflitos na loja.
     Só não perco a razão pois forço-me a crer que algum dia estarei melhor.
     Vou ver se escrevo sobre os mistérios do mar, agora. Abraços.

Teorias dialogadas

     - ... Quer dizer que você acredita mesmo em um paraíso?
     - Sim; é onde, depois de nossa vida honesta pela Terra, viveremos para sempre em alegria.
     - Você tem alguma ideia do que significa, de fato, “para sempre”? Não acha que, algum dia, mesmo que esse paraíso exista, vai acabar?
     - O Reino dos Céus é eterno.
     - E o que você vai fazer durante toda uma eternidade lá? Tenho certeza de que você nunca assimilou o conceito de “eternidade”.
     - Não há necessidade de se cogitar os afazeres celestes da eternidade; simplesmente existiremos em paz divina, na presença de nossos queridos que já partiram e de outros, bons, enquanto ruirá o mundo terreno e as almas pecaminosas danarão eternamente, enquanto desfrutaremos do Paraíso, nas profundezas hediondas do Inferno.
     - Sei. Mas, como será a rotina paradisíaca? Vocês, que pretendem ir para lá a qualquer custo, vão apenas ficar olhando uns para as caras dos outros e ficar felizes com cada presença anônima aprovada para entrar em tal Reino? Será um antro de todas as emoções puras, honestas e positivas? Sobre o que conversarão? Qual será o assunto cotidiano? O baixo firmamento repleto de tenras nuvens? O sempiterno aroma de flores recém-desabrochadas, a singeleza de paisagens rurais e a vivacidade dos ingênuos animais que por ventura por lá estiverem? Dou alguns anos para não se ter mais sobre o que se conversar, não ter mais distrações. Tudo vai virar um grande tédio. E volto naquilo: mesmo o Paraíso não terá um desfecho repentino – assim como teve um começo inexplicável, o universo – mesmo em seu Deus? 
    - Você não entende. Deus é a razão. Deus, é inexplicável, e isso explica quaisquer inícios e termos. Deus é a origem, o fim e o recomeço. Deus é a unidade que abriga todas as propriedades do cosmo. Quanto à “rotina”, não pense no Paraíso como uma cópia rural da vida na Terra. Lá, estaremos distantes das preocupações; dentre elas, a que você chama de “rotina”. Viveremos num fluxo que nos impelirá distraidamente pelos deleites dos sentimentos bons. Não será um mundo físico e, destarte, corruptível. Estaremos distantes do alcance de qualquer maldade, seja exterior ou de nosso próprio interior.
     - Quando estiver por lá, nunca irão – como haverá bastante tempo para se pensar – conjeturar sobre o que os aguarda além das fronteiras do Paraíso? E o Tempo, que um dia virá para destruir a Memória? Acham que estarão seguros do final do processo que não se sabe como, nem quando – e nem mesmo se –, se iniciou, que possibilita a existência da consciência, que é o deslocamento do espaço pelo tempo? Tem certeza de que não nascerá discórdia do tédio de tantos milhares de séculos de “sentimentos bons”?
     - A percepção do tempo será diferente. Não se contarão em anos, dias, horas, como se faz aqui. Viajaremos dentro do tempo, e não através dele. E o tempo não findará. O universo não encontrará um final.
     - Se você considera, então, que não haverá ocaso para o cosmo, dará na mesma qualquer percepção do tempo a passar. Como nunca vai acabar, em algum momento o peso do acúmulo dos eventos e dos sentimentos os enfastiará, e vocês estarão eternamente presos à felicidade do Paraíso. E isto é abominável: estar preso a uma vontade, que não mais é sua, de forma inescapável.
     - Está insinuando que algum dia “enjoaremos” da presença tão mais próxima, certeira e constante de Deus? Você acha abominável viver em alegria eterna? Ora! Vocês!..., vocês são incompreensíveis. Buscam, durante a vida inteira, provar coisas tão absurdas quanto parecem ser as nossas a vocês. O que me aflige é que o que querem provar é a negação absoluta. Querem negar que exista um Mistério ancestral e infinito, sendo que nós o respiramos constantemente – não há quem não sinta a tangibilidade inextricável da existência como um todo! Querem negar tudo tenha um propósito, o que é, contraditoriamente, praticamente comprovado por suas próprias teorias – não foram vocês mesmos quem calcularam que a existência de vida, ainda mais inteligente, tão somente é possível sob circunstâncias tão específicas que se consiste um evento da mais extrema raridade?
     - Concordo; entretanto, como qualquer teoria, teísta ou ateísta, que é conjeturada – que, a partir do momento em que nasce, não se consegue provar ser verdadeira nem falsa –, surgiu, ao mesmo tempo dessa que diz sobre a raridade da vida, a hipótese dos multiversos, e de que estamos no único, ou um dos únicos, dentre infinitos outros que falharam em conceber vida. E você me dirá “ora, o que te faz pensar que teve a sorte de estar exatamente no universo certo, sendo que em todos os outros não há consciência para se sentir?”, ao que eu responderei “Por isso mesmo; a consciência, só existindo sob as condições raras em que nos encontramos, só consegue alcançar a si mesma se, obviamente, existir em algum lugar”. Só se pode existir, e saber disso, onde há essa possibilidade. Alguém tem que estar em algum lugar para se pensar sobre qualquer coisa e acabar chegando onde estamos. E o lugar só pode ser onde há a possibilidade de consciência, é claro. Estamos aqui para provar que não estamos alhures. E outra: se, aceitando a hipótese dos multiversos, ainda assim não houvesse em nenhum deles a mais singela forma de vida e consciência, se todos os versos do cosmo fracassassem em conceber a vida e atribuí-la, em algum momento, consciência de si própria e do decurso do tempo, seria como se tudo jamais tivesse existido, nem tentado existir. Não haveria alguma coisa, algum alguém para sentir o tempo passar, para sentir sua inexorabilidade. O cosmo precisa de nós para existir. Só existe através de nós. Teria sido um descaso consigo se não nos houvesse criado, para que, destarte, se sentisse sua existência. O cosmo – a menos que seja ele mesmo algo vivo e consciente, e minhas teorias não descartam essa possibilidade – existiria sem o tempo, explodiria e se encolheria novamente e voltaria ao vazio primordial sem que nada além de trocas químicas invisíveis ocorressem, sem qualquer motivo maior, mas apenas um conjunto de ações e reações arbitrárias. Se quiser, pode considerar isso uma forma de vida. Talvez o universo seja uma consciência colossal, cujas ressonâncias dos pensamentos sejam o que nos faz acreditar em deuses e ciências.
     - Chega um momento em que se deve escolher entre analisar a bênção da vida de forma branda, aceitando que possa haver uma presença de consciência pairando em cada recanto do mundo físico que não apenas a de Deus, mas de qualquer reação química, ou só aceitar a existência de vida ao que nossos olhos enxergam, o que nos pode fazer parecer muito arrogantes, quase como detentores de uma percepção aguda, perfeita, incontestável. É paradoxalmente terrível o mundo das ideias, que nos flagela com o açoite da prepotência sob qualquer tentativa de julgar, comparando, o certo e o errado, a vida e sua ausência. Veja, compreendo todas as suas teorias. Percebo que você entende a sutileza entre cada uma das crenças, afinal. Isto que estamos tendo não é uma discussão, um debate nocivo. Acredito, agora, fora de intrigas existenciais e hipotéticas, que estamos criando um agradável e construtivo laço de amizade.
     - Sim, acho que estamos. Mas, tantas teorias me cansaram a mente e até os músculos do rosto, com o esforço da concentração. Sinto tantas ideias tão entrelaçadas que prefiro deixá-las para analisar posteriormente – como se deixa para tentar soltar um embaraçado de fios de costura, onde qualquer um que for puxado erroneamente acarreta num nó quase indesatável, quando se tem as vistas descansadas, para se escolher os certos a puxar.
     - Ah, sim, também sinto o mesmo. Olha, lá vem. Você vai até qual estação?
     - Até a final.
     - Eu desço na quinta, daqui. Olha, é um daqueles trens novos! São um barato. Vamos, tem um banco para dois ali, desocupado.
     - Sim, vamos. Eu sempre vejo os trens novos da outra linha. Estes desta são raros!
     - Ah, é? Comigo é o contrário.
     - Mas, considerando o fluxo de usuários e do itinerário usual de cada um, é mais comum ver os da linha que eu disse.
     - Só se você considerar que...

(e discordaram alegremente por mais cinco estações naquele dia, e em outros; então, se tornaram e continuaram grandes amigos até que o Mistério os tomou da vida sobre a Terra e os levou para longe da Memória e para mais perto do Tempo, onde pudessem provar – ou não – suas conjeturas um ao outro)

Coisas diversas

     Estou para falar sobre coisas diversas.
     Estou muito irritado. Torci para que alguém de cara feia me irritasse um pouco além do normal hoje, depois de determinado momento. Só para ver até onde conseguiria me segurar para não esbravejar, ou descolar uma briga estúpida.
     Sabem, estive pensando sobre pessoas. Bem, cada dia mais se afastam de minha mentes as incólumes percepções que de uma tinha. Perdem o brilho incomum e se tornam vulgares com uma facilidade tão maçante, as pessoas, as coisas! O que mais intriga é lembrar de como ainda há pouco eu ainda sustentaria em ideologia sua imagem repleta de uma graça resplandecente, uma leveza sublime; mas, hoje, ela toma a forma banal do grupo geral de pessoas meramente “interessantes”. Não omitirei que há uma vibração no fundo de minha alma que a guarda em toda a sua beleza mais apaixonante – aquela primeira beleza, que permanece fora de todo o tempo, de toda palavra, de qualquer ponderação –; agora, entretanto, parece apenas um resquício ainda grave, ainda vivo do passado, mas prestes a desafinar, a desbotar. E, olhe, de outra poderia dizer que é alguém que se deve deixar antes que se queira demais, mas quero mesmo até parecer presunçoso e orgulhoso enquanto puder acreditar em toda a força da afinidade. Sou eufórico com cada pequeno sucesso – embora qualquer deslize me desmoralize gravemente –, e sou melhor neles que nos grandes. Apraz a mim acompanhar o desenvolvimento do afeto, a evolução do desejo; é uma cascata borbulhante de emoção no coração a cada sentimento recíproco, a cada ideia correspondida, a cada pensamento antecipado.
     Cheguei a uma pequena conclusão, talvez improvável, inexata, mas interessante, hoje: o se ama os detalhes – consequentemente, o passado, pois os detalhes de que falo são fatos, não aleatoriedades ainda para surgir – ou o continuum, a experiência em decurso. Há os que prestigiam o passado, os locais, suas histórias, e os que apreciam a mudança, o dinamismo, o que se torna novo. Não se pode amar os dois, verdadeiramente, ao mesmo tempo. Não se pode amar as vielas históricas de sua cidade quando se ama o progresso que as quer reformar. Nem a facilidade de um laptop quando não se consegue se acostumar com um teclado tão miúdo e com a ponta do dedo como mouse. Não sei dizer se um ou outro é mais ou menos condecorável, válido; sei que faço parte, acho, dos que gostam dos detalhes.
     E, digam, não acham que falta alguma coisa muito grande na configuração do universo, algo que nos permita vazar reflexões inefáveis e toda a ideologia do pensamento? Sinto-me muito afogado nas coisas que penso. Literatura, por si só, não me parece que será sempre suficiente; quis me expressar por música, mas ela também, sozinha, não atinge todos os objetivos. As duas juntas, como tento misturar, também ainda não são completas. Talvez a única solução possível seja a empatia total entre todos os indivíduos, o que, num primeiro momento, seria uma avalanche de informação e satisfação, mas, num segundo, a unificação de todas as ideias e pensamentos. Seríamos uma unidade, seríamos deus, não existiria nenhuma necessidade espiritual que nossa unidade não suprisse. Seria uma questão de escolha: continuar como estamos ou sanar todas as dúvidas e satisfazer todos as vontades da alma por um certo tempo... pelo preço do fim do progresso científico e tecnológico da humanidade e, depois desse certo tempo, o eterno enfado.

A obrigação dos professores

     Não é obrigação apenas de professores de Português saber falar e escrever bem em nossa língua nativa. É de todos os seus falantes.

     - Mas por que eu preciso saber Português direito se trabalho com [cargo aleatório]? E se estudo [curso aleatório]?
     - Geralmente, para quem faz esse tipo de pergunta com a idade que você está, já não adianta resposta alguma. É provável que, exatamente pelo motivo de ter me perguntado algo assim, não a entenda. Entretanto, não sou de deixar de lado as poucas esperanças da erudição coletiva para com todos os seus colaboradores; então, vou te explicar. Você, como todo ser humano, deve ter domínio sobre sua língua nativa por vários motivos. Em princípio, porque a racionalidade vem da capacidade de comunicação, interação e formulação de pensamentos. O simples ato de pensar exige, para as mais complexas formulações, que levam à verdadeira e sacrossanta racionalidade humana, a habilidade de ligar e correlacionar símbolos – ou seja, os componentes de nossos sistemas alfanuméricos. São os grupos de símbolos – as palavras – que concretizam toda a abstração, interna e externa, em que vivemos, e creia-me: tudo o que existe é abstrato. Mas precisamos nomeá-lo. Precisamos nomear o máximo de coisas possíveis para que, em termos comuns – e não em gestos e desenhos subjetivos – possamos nos comunicar a respeito delas. Discordar. Teorizar. Concordar. Concluir. Somos capazes de tudo isso quase tão somente por conta da linguagem. E só por ela somos nós que temos verdadeira consciência sobre o universo. Não que os outros animais percam muito com isso; mesmo o conhecimento divino não leva a nada, porque o mistério original é maior e se encontra além de todas as expectativas de todas as ciências e religiões.
     Depois, em qualquer carreira que for, você precisará, em algum momento – ou, o que é mais certo, em vários – interagir com outras pessoas, pois o trabalho só existe e é necessário porque somos uma sociedade. Seja qual for a posição hierárquica que assumir em qualquer empresa, e mesmo se trabalhar por conta própria, você terá que se comunicar com clientes e superiores, ou subalternos. Em todos os casos, um comunicado, uma declaração, um aviso, o que for, mal-escrito é horrível. Não transmitirá segurança, nem será devidamente respeitado pelos outros.
     Ainda além, posso dizer que você não vive plenamente se não domina a linguagem. Já estamos lançados em um lugar suficientemente misterioso e, se pensarmos bem, indescritível. Já é difícil, com todo o vocabulário que temos à disposição, traduzir nossa interpretação dos sentidos para o mundo. Por tantas vezes você fica sem saber como dizer o que sente que, para não ficar constantemente angustiada, vai bloqueando essa necessidade. Você vai bloquear cada vez mais as possibilidades de definir – e, assim, de poder interagir melhor com os outros – seu íntimo, atrofiando sua vontade, sua capacidade, seu ser. Você irá sumir, será como tantos que somem diariamente da história da humanidade sem deixar rastros, será ainda mais irrelevante que um ser sem consciência, que nasce, vive, se reproduz e morre, deixando apenas a certeza da continuidade da espécie. Não que isso não seja importante, e o é, deveras; mas, nos foi dada a raríssima oportunidade da racionalidade, e melhor, a capacidade de aprimorá-la. Temos um tempo, como civilização, tão pequeno para tentar entender alguma coisa – e, mesmo que já tenhamos chegado ao ponto em que se sabe que nada se pode verdadeiramente saber, continuamos resolutos – e você e mais tantos outros como você têm coragem de passar uma vida inteira sem sequer tentar entender melhor o mundo através da linguagem? Saber que isso ocorre com alta frequência é repulsivo, blasfemo!
     - Nossa!, como você se acha.
     - ... Você fica aí, com sua cara cansada e seu olhar raso, barrento, pensando no motivo pelo qual está ouvindo a tudo que digo, e tentando encontrar palavras para rebater. Você tem a ideia de uma grande frase, de um argumento convincente, mas não tem palavras para expressá-la. Então você diz algo como “cuide da sua vida”, ou “que frescura”, e se contenta! Além, ainda tenho que ouvir que estou “com inveja”! Ainda tenho que aceitar esta crendice estimuladora de que todas as pessoas são únicas, que você é cheia de personalidade! Ah!, me poupe disso! Você e mais cem mil imbecis são absolutamente iguais! E há outras centenas de milhares em profundo estado de coma espiritual auto-induzido. É angustiante; fico imaginando: tanto progresso intelectual que poderíamos ter atingido se não fosse pelos fracos e preguiçosos como você!
     Agora, vou encerrar esta conversa, e não quero ouvir uma única palavra irritante saindo dessa sua boca. Não quero ver a menor expressão de descaso na sua cara amorfa. Nem um risinho de escárnio. Quero mesmo é que você esqueça de tudo que eu falei, pois constato que isso que você tem só pode ser uma doença incurável. E transmitida por contato prolongado. Não quero mais nem te ver, se puder.
     - Não vai mais me ver mesmo, porque enquanto você fica pensando nessas suas coisinhas cultas, eu vou estudar algo importante de verdade, que o mundo precisa hoje em dia, e não essa sua filosofia que não leva a lugar algum. Esse monte de palavrinhas bonitas, eu sou prática, não preciso disso, não tem mais necessidade disso. Você fala assim só porque sabe que eu não sei um monte de coisa que você falou. Mas, duvido que você saiba preencher uma ficha de Controle de Circulação de Chave.
     -Ah!, que me importa essa porcaria de ficha! Eu disse pra ficar quieta!
     - A boca é minha, fico quieta se eu quiser.

     E foi assim que, naquele dia, uma pessoa foi morta e outra foi presa.

Unfarewelling

     Achei que seria eu quem não fosse conseguir passar dessa. Achei que nunca conseguiria sair deste problema. Ora, nem nunca fora um problema também seu, aliás. Seria muito insensato de minha parte exigir que você ficasse num impasse comigo. Agora: passei por uma turbulência terrível, fiquei atordoado, mas consegui seguir; foi tão sutil a mudança, foi tão raro o acorde que me guiou! E, agora, você vem e me diz sobre amor? Quem, depois de tudo, você imagina ser - ou continuar sendo, talvez - para se jogar de volta na minha incrível nova vida?
     Não acha que me deve algum tipo de respeito? Assim como eu respeitei suas escolhas, como acatei seus descasos, como suspirei sua inércia? Eu aproveitei apaixonadamente, euforicamente, completamente uma oportunidade maravilhosa que me surgiu, eu me abracei a ela com todo o meu ser, com todo um ardor ainda maior que o que achava infinito e que era para você, e veja! Não direi que te esqueci, mas você se tornou apenas uma faísca no meio do sol que ajudou a criar!
     Agora você vem e me diz que é uma nova fase, diz que não enxergava com clareza, que estaremos melhor juntos? Só não sou rude com você pelo que representou para mim! Pelo que ainda representa e sempre representará, aliás, e você sabe muito bem disso! Só porque te amei com tanta devoção que hoje sou tão livre e feliz amando outra pessoa!
     Mas o pior é que você me abala! Vou ter calafrios, vou suar pensando em por que este tipo de coisa acontece comigo. Por que você surgiu pela primeira vez? Se bem que foi bom, pela cadeia de eventos que acabou me trazendo até onde vim. Por que você voltou, então? Não ficou tudo certo? Eu quis tirar você dos temas centrais da minha vida por tantas vezes, mas não há meio! Queria te deixar apenas em um recanto bonito da memória, mas você sempre paira, sempre circula, sempre volta à minha mente!
     Por favor, considere tudo pelo que passei. Se tem um pouco de apreço por mim, deixe-me sem você. Estou certo de que consegue superar sua crise, como superei a minha.
     Te amo. Adeus.

Os lindos desfechos românticos

     Não se pode mais escrever algo grandioso. As pessoas esperam sempre desfechos lindos e simplistas, que possam ser apreendidos com o menor dos esforços pelas suas cabecinhas preguiçosas. Nem para enredos objetivamente dissecados e explicitados de novelas que duram meses rodeando assuntos simples dão uma chance! Há mil revistas semanais explicando para as madames de forma ainda mais simplória tudo que não têm interesse de tentar compreender, indicando as ligações que nem ousam por si próprias fazer!
     Não pode ser!
     Não! Que não seja o fim das grandes histórias, cujos heróis perturbados, oscilando entre a responsabilidade de seus destinos e o apego pela vida, se sacrificam, sem volta, pelos seus objetivos! Pois tantos são ressuscitados depois! Que atitude medíocre, de tantos criadores, permitir sempre a ridícula, absurda e forçada felicidade completa de suas personagens ao final de cada romance!
     Não há tragédia real no mundo que não seja reparável, então? Escrever é dar vazão aos sonhos, mas... por que nunca permitir à arte uma renovação em seu potencial emocionante? Por que nunca destruir quaisquer expectativas de quem lê, ouve, assiste? E, mesmo quando se tenta criar um enredo mais cruel para as personagens, sempre há tempo, e por isto todos esperam, para a consumação de pelo menos um lindo beijo apaixonado antes do apocalipse, antes que o casal nunca mais se encontre. Por que não o desespero da absoluta perda física? Da insatisfação eterna, do completo erro; por que não a manifestação chocante de um ódio surreal de alguém por si mesmo por ter dado chance ao mais abjeto fracasso?
     Para onde levaram e trancafiaram a beleza da verdadeira tragédia? É reconfortante a história que termina sem perdas significativas. Entretanto, sempre procurei alguma que me fizesse emocionar verdadeiramente, lá no íntimo. Por todos os esforços terem sido em vão, queria chorar de angústia. É um tipo de emoção que não se encontra mais descrito. Talvez mais real e comum que se imagina.
     Matarei mais algumas personagens minhas.

Sobre maiúsculas e minúsculas

     Alguém tente me dizer sobre o que não se imagina que outrem possa sentir como sinto. Para mim, e é dispensável qualquer estudo que prove o contrário, não se ama ninguém como amo alguém. Pelas galerias de minhas recordações, há inumeráveis sorrisos de amor em retratos vívidos, e eu caminho pelos corredores dos salões de minha paixão a olhar cada olhar de um castanho claro e divino que se imprime em mil tonalidades em suas íris que contêm todo o amplexo de sentimentos fugidios nos quais naufrago sem me molhar, pois fogem de meu toque por centímetros.
     É uma questão de abandono. E dedicação. Vejo ao longe, ainda que às vezes bem pálido, quase indistinguível, a raiz das minhas motivações para tudo. É um só sonho, um só desejo, que me faz buscar todos os meios para alcançá-lo. Isso faz com que os meios se confundam com "outros sonhos". Os meios são tudo que buscamos aperfeiçoar: alguma forma de expressão artística, altas patentes em empresas, vigor físico, etc.. Tudo não passa de meios para se atingir o objetivo maior, o grande sonho - vamos torná-lo graficamente especial adicionando maiúsculas: O Grande Sonho.
     O Grande Sonho. Ele surge a qualquer momento e nunca mais vai embora. Se algum dia se acreditou ter O Grande Sonho presente, mas depois dele se abriu mão, não era O Grande sonho; era só um grande sonho. Penso que, embora esteja escrevendo sobre algo tão incrível, talvez o que eu tome por O Grande Sonho na minha vida seja, na verdade, só um grande sonho. Não posso afirmar que sei que é ou não; eu estaria sendo obtuso, e tenho apreço pela incerteza. Mas, pelo menos por agora, a mim me parece que Meu Grande Sonho é o definitivo.
     E por ele eu me dedico às atividades que me agradam e vivo meus "meios" disfarçados de outros sonhos, sempre à espera do dia em que a melhor das chances soprará sua deixa em meu ouvido, e serei um misto indissociável de técnica e impulso, de controle e receio, de precisão e titubeios e, em um só momento, em uníssono, se todos os diminutos planos derem certo, se abraçarão Dois Grandes Sonhos.
     Meu Grande Sonho é um momento. Pela minha mente passam cinematograficamente detalhes espetaculares da ocasião, eu vejo os olhos e os sorrisos, ouço os acordes, sinto os perfumes e os cabelos livres nos lados dos rostos, há também o delicioso frio que nos invade a partir do coração em momentos emocionantes, mas ainda mais forte, sinto as dores das angústias fugindo da certeza, e haverá também o luar, pois será durante a noite, e estrelas longínquas, que talvez sustentem outras vidas a contemplar o brilho mínimo e unidimensional de nosso astro e a realizar Seus Grandes Sonhos e a imaginar se há vidas realizando Seus Grandes Sonhos sustentadas por este pontinho de luz enquanto pensam a mesma coisa sobre eles e daí para sempre neste ciclo. Meu Grande Sonho é lindo em prosa, verso, acorde, tinta e, é claro, possui todo o encanto do mistério existencial.
     Depois dele, quero uma vida de profundo deleite, sem mil roteiros por dia, e todas as grandes realizações somente possíveis após o sucesso d’O Grande Sonho.
     Depois, vem O Fim, e o começo d'A Grande Memória.

O conceito de liberdade

é, adoravelmente, uma síntese de motivações e realizações banais. Vejam o meu maior exemplo; é patético: meu cabelo comprido. E a barba, geralmente. Claro, há muitos outros pormenores, mas isto se sobressai. Deve ser o de muitos homens. Não acredito, entretanto, que o de muitas mulheres seja de seus cabelos curtos. A liberdade vem, segundo minha linha de pensamento, em conjunto de algum tipo de cultivo, físico ou emocional. Não sugiro com isso, entretanto, que acredito que devam deixar crescer a barba. Aliás, muito menos quero generalizar o conceito sacrossanto e individual de liberdade. Exponho minha simplória alegria - o cabelo comprido - para que ninguém se sinta tolo por se sentir mais feliz usando calça xadrez e camisa listrada, ou por gostar de cantar alto sua música favorita, ou coisas consideradas mais "baixas" que, por pudor alheio, não ilustrarei, embora eu creia que, enquanto não afetarem o conceito de liberdade de outrem, são tão válidos quanto qualquer outro.

Abandone a sanidade

     Há cinco níveis, abrangentes, perceptíveis, para a concepção de uma história.
     O primeiro é o básico, que conta uma história verídica, uma biografia, um relato de uma de tantas guerras que nosso mundo assolaram.
     O segundo ocorre quando se cria uma história fictícia dentro de nosso Universo. Um futuro próximo alternativo, um personagem inventado mas perfeitamente normal, como qualquer um de nós, se é que somos todos perfeitamente normais, algum conto romântico platônico contemporâneo.
     O terceiro é quando se cria uma fantasia, um Universo fictício, com seres inexistentes, mitologia própria, relações diferentes entre seus habitantes e a natureza, ou as forças da natureza, um quê de magia, demônios e deuses estranhos, complexos, vingativos e/ou amistosos, regras físicas, químicas e matemáticas levemente alteradas, para dar os contornos necessários para a trama.
     O quarto é quando se mistura este novo Universo ao nosso, partindo do pressuposto de que estes estavam bem separados. Por meio de alguma magia exclusa, alguma porta dimensional, ou seja lá o que for, os dois Universos entram em contato, e deste contato saem faíscas, e humanos céticos fogem de ciclopes de lá, e cientistas loucos de cá promovem experiências bizarras com sátiros e unicórnios.
     O quinto é quando se coloca um dentro do outro, e dentro de outro, e numa ideia incrível tudo se engloba, de forma infinitamente abrangente. Não mais se sabe qual mundo surgiu de qual, ou qual tem domínio sobre qual, e quantos outros Universos dentro desta confluência podem nascer ou se fazer visíveis, sendo que qualquer novo mundo que surja pode ser visto de forma totalmente independente, brigando ele mesmo pelo domínio dos outros, como um deus que cria outro deus, que acaba criando outro deus, e este, por sua vez, sem perceber, cria o criador de seu criador, num paradoxo inenarrável.
     E sabe-se lá quantas voltas isto deu, ou quantas vai dar, se termina ou não, meu Deus! Quem foi que te criei? Há um complemento para tudo, ainda para surgir, que falta para que todas as histórias e Histórias possam por fim se unir numa corrente de eventos totalmente entrelaçada, sem pontas soltas, mas tampouco visíveis, decerto inexistentes. É como se houvesse um propósito indecifrável para todas as ideias que já foram escritas, e que ainda serão. Como se estivéssemos dando corda em todas as facetas deste Universo, e nossas histórias dando corda em outros versos intangíveis, e suas histórias também, todos simultaneamente, até que em determinado momento estalaremos a corda, chegando ao tão esperado momento, em que Tudo começará a rodar, como o carrinho dispara assim que o soltamos no chão, ávido para existir, cumprir seu propósito, ou o propósito de quem dá corda.
     O que nos leva ao início. Pois por qual superfície este carrinho andará? Não se pode alcançar o final desta incerteza. Algo misterioso sempre aparecerá por trás de qualquer teoria complexa e profunda. E, por trás deste Algo, Outra Coisa ainda existe. E depois. E depois. E depois, e ainda antes, e para sempre.
     Estamos presos. Não só nós. Os mundos que criamos estão presos. O carrinho está preso. O plano por onde ele correrá está preso. O Algo está preso. E a Outra Coisa. E tudo, e Tudo. Cada um preso dentro de algum lugar; e em cada lugar se acredita que o que está além conhece todos os segredos e detém todas as chaves. Talvez o que está além conheça as respostas para o Universo que está a seu alcance, sob seu provável domínio. Mas se perde como habitante de seu plano em busca de uma resposta maior.
     Estamos presos.

O constante fluxo de pensamentos

     São raríssimos - e quando digo raríssimos, quero dizer os raros da raridade, os quase improváveis, os totalmente inesperados - os momentos em que percebo que estava flutuando, sem pensar em nada. Porque, em todos os outros, as engrenagens do cérebro estão a pleno vapor. E, entre os pensamentos sobre a temperatura, a próxima coisa a se escrever na comunidade - embora o que agora escrevo não passou pela minha cabeça antes - o almoço e a janta do dia, as moças bonitas que perambulam por aí, o dinheiro que ainda tenho e os encontros que tento criar, algumas lembranças e lascas de conhecimento dão voltas e voltas por aqui, e vêm fazendo isso há muito tempo, provavelmente desde quando me foram introduzidas. E, acredito, jamais deixarão de se fazer lembrar nesse turbilhão de trivialidades e sabedoria. Alguns ressurgem após alguma citação, mas, quando isso acontece, parece que sempre estiveram por lá.
     As mais brilhantes são Sir Ripchip enfrentando dragões e chamando homens de ratos; o corte no tecido da realidade que daria no mundo dos mortos, de Philip Pullman; o Eclipse e o renascimento de Griffith; a piscadela de Sonny para Spooner enquanto apontava a arma para Susan; o tocador de realejo da vila Kakariko e o evento relacionado a ele e ao Link; a Música da Criação dos Ainur, concretizada por Ilúvatar; o adeus de Sir Auron; os moradores de Itaguaí fugindo do Alienista; o Pensador Profundo, receoso em revelar a resposta à Grande Questão da Vida, o Universo e Tudo o Mais; o retorno de RF como Russel Faraday ao final da Dança; a despedida de Orihime; a flecha de Thomas que acertou David Bruce no rosto; o suicídio de Kratos.
     Entre tantas outras. Os contextos inerentes a esses eventos são, de certa forma, a paisagem das margens da estrada sobre a qual eu caminho, na jornada pelo mundo da criação, esta jornada sem objetivo outro que não a própria jornada.

Alguma coisa?

     Não, isto é sobre absolutamente nada. Ou tudo. Cada um acredita no que quiser: o enorme espaço que não é ocupado pelas partículas elementares, que de fato é maior que o tangível mundo da matéria, pode ser visto como um imenso vazio. Entretanto, certamente há os que acreditam que ali existe, seja da forma como queira existir, muito recheio, que vive se perguntando:
     "O que são estas coisas que existem entre nós, no espaço que não conseguimos ocupar?"
     Existe outro universo, ou vários outros, neste mesmo lugar em que estamos, ocupando teoricamente o mesmo espaço que o nosso? Será que há sombras de nós mesmos, naqueles diversos lados deste mesmo espelho, que pouco sabem do que realmente é feito aquilo que as constituem, assim como sabemos que nossa química e física não têm base alguma? Há alguma outra crença, algum outro nível completamente desconhecido de relação com seus deuses? Ou uma fluidez maior de tempo e de espaço? Ou, quem sabe, nossos deuses estejam lá, dos outros lados, procurando por nós, pelo pedaço de si mesmos que não conseguem encontrar. Somos os deuses deles, escondendo inconscientemente segredos que eles buscam incansavelmente. Assim como nós, assim como nós.
     Enfim, nada sobre nada, ou um poço fundo de água límpida.

Abandone o estilo

     Deixe de lado as comparações e a outra metade de metaforismos diversos. Renuncie à narrativa impecável, à obrigatoriedade de seguir tempos verbais à risca, perca a fluidez. Pare de medir os parágrafos com os dedos. Pelo menos por alguns instantes, ou dias, ou meses, anos, o tempo que precisar, durante o tempo em que se sentir bem, até se sentir renovado.
     Livre-se da obrigação clássica de ter que inovar, e inove simplesmente por não inovar em nada, e até disserte sobre isso, sobre as razões disso, sobre a previsibilidade elevada a si mesma, esta loucura consciente. Deixe a entender esta novidade de forma que se percam tentando tirar a prova real, o seu motivo último.
     Abandone o estilo. Abandone os padrões, todos eles, que desde sempre conseguiram te reger. Livre-se da rima rica, das irmãs coesão e coerência e, enfim, esqueça que a literatura implica em algum tipo de compreensão e se deixe levar em absoluto pelo devaneio eterno de sua imaginação.

Os 19.500 caracteres

     Pensei em escrever coisas avulsas aqui, e comecei agora. Reparo que este editor de texto é lento demais, às vezes tenho que esperar alguns segundos pra ver se não escrevi algo errado e consertar. Também, lento como é, trava meu fluxo de pensamentos, pois não me permite acompanhar meu texto enquanto escrevo, e sempre perco o fio da meada. Entretanto, mesmo que eu tivesse um gravador de voz e falasse tudo que me vem em mente quando me dá a louca, eu perderia o raciocínio. Parece que, embora em minha mente as palavras soem como minha voz e num ritmo normal, assim que tento transferir para o mundo de fora as imagens, sons, ou seja lá o que for que se passa aqui no mundo de dentro, percebo que meus músculos não são velozes o suficiente para acompanhar a velocidade do meu cérebro. Deve acontecer com todo mundo, provavelmente, mas não acho que as pessoas perdem muito tempo pensando nisso. Há coisas mais legais a se pensar.
     Hoje, por exemplo, li numa revista que sabe-se que cães têm sonhos, mas não se sabe sobre o quê. Não é bacana? Logo imaginei uma história cheia de conspirações, num futuro distante, quando os cães e os gatos evoluíram a um nível como o dos humanos, desenvolvendo uma linguagem própria e aprendendo a nossa, libertando-se de nossa tutela, para em seguida libertarem-se do preconceito que certamente teremos deles, e então, finalmente, construindo suas próprias cidades e contribuindo com o avanço tecnológico do planeta. Às vezes pensamos sobre invasões alienígenas, um povo de outro planeta chegando no nosso, seja em paz ou não. Não seria estranho para eles se, ao chegarem aqui, descobrissem que nosso planeta, ao contrário do deles, deu a chance para três espécies totalmente diferentes se desenvolverem ao mesmo tempo? Talvez até desagradável, caso estivessem planejando um ataque. Imaginem só: humanos, caninos e felinos juntos, com fuzis, dentes e garras, agindo em conjunto contra uma força desconhecida? Espero que ninguém me roube essa ideia, acho que daria uma boa história.
     Enquanto eu escrevia o parágrafo acima, e a frase em que estamos, consegui transcrever uma das coisas que pairava em meus pensamentos, a troco de perder pelo menos outras cinco coisas. Já tentei controlar esse problema escrevendo, para cada ideia, uma palavra-chave, a fim de me lembrar do que pensava quando escrevi cada uma, e de dar continuidade ao pensamento. Mas logo me esqueço. Surgem outras milhares de coisas geniais, e mais mil palavras-chaves, que viram só um bocado de palavras inúteis, seus significados todos perdidos. Esvaziar a mente de uma ideia usando apenas uma palavra não serve pra nada. O cérebro pensa "firmeza, vou guardar a informação lá nos arquivos e deixar catalogado pra eu buscar depois, quando ele precisar". Mas aí ele deixa o papel com os registros cair, e um neurônio louco para mostrar serviço logo trata de se desfazer daquela informação sem nexo, e tudo se perde para sempre.
     E eu aqui, escrevendo um monte de coisa sem ligação, perdido na balada, publicando anacolutos por atacado e varejo, enquanto podia estar dando continuidade aos meus "trabalhos". Mas qual é mais importante? O texto bonito e sem erros, com intenção de ter intenções, ou este amontoado de besteiras? Tenho aqui ainda 15.684 caracteres disponíveis, e talvez eu os use, sim. Acho que ler tudo isso de uma vez só seria como lavagem cerebral. Ia ser menos doloroso se a pessoa lesse um parágrafo numa hora, depois lesse outro, e não na ordem normal. Podia começar de qualquer um, pensar sobre o nada que ele fala, e depois ler um outro, outro dia, sei lá. Eu devia ter falado isso no primeiro parágrafo, mas não quero editar o texto. Acho que vou revisar só uma vez, antes de publicar, bem por cima mesmo.
     Acabou de entrar uma pessoa no meu MSN, mas nem vou falar com ela. Acabei de tomar um Danette, o normal, de chocolate, bem gostoso. Outro dia cantei pneu com o carro, mas e daí? E daí digo eu para o meu "E daí?". Cada momento que eu vivo não é digno de recordação? Seria eu mais feliz se cada coisa bacana ou engraçada que me acontecesse pudesse ser gravada para que eu mostrasse aos meus amigos? A gente bem que podia ter três vidas paralelas, uma pra dormir, outra pra viver e outra pra compartilhar a anterior com os outros. Aliás, a parte de viver também podia ser dividida, uma pra trabalhar e juntar dinheiro, totalmente sem emoções, outra para a família, outra para amar alguém, e outra para correr atrás dos sonhos mais grandiosos, vontades mais impulsivas e absolutas, e desejos mais loucos. 24 horas para cada vida paralela. Acho que podia ter mais uma pra dormir também, aí seriam duas vezes mais descanso por dia, já que serão mas vidas. E claro que essas vidas poderiam se cruzar em determinados momentos, como um sonho grandioso com a parte do trabalho, ou desejo louco com o amor, coisas assim. Seriam tão independentes quanto cada um de nós nos achamos independentes de nós mesmos.
     Eu estava vendo meu flogão antigo outro dia, e parei numa foto que eu coloquei várias alternativas para a expressão do meu rosto na foto. Uma das alternativas era "estava espantado, pois tinha acabado de ver no dicionário a palavra morremorrer, e ficou pensando sobre quantas palavras estranhas existem". Entre outras alternativas totalmente imbecis e engraçadas. Foi um bom dia de pensamentos desconexos. Algumas vezes fico com receio de publicar qualquer coisa na Internet, ou até mesmo escrever no Word, pois tenho medo de que me roubem minhas ideias. Meu computador já tá tão bichado que nem sei como já não foi para o Paraíso dos computadores. Ah, acho que meu computador vai pro céu, ele é um lutador, sempre me ajudou, embora esteja cada vez mais lento, mas eu também ficarei lento quando estiver chegando ao fim de minha vida. Não o culpo. Espero que não me tratem da maneira que eu o trato, quando eu estiver velho como ele. Eu o desligo direto no botão do estabilizador, quase sempre, e também o encho de pancadas e tesouradas, na vã esperança de que ele funcione melhor por se sentir ameaçado.
     Falando nisso, numa outra revista eu li que o hábito dos humanos de conversarem com objetos inanimados ou seres que não entendem nossa linguagem vem desde os tempos das cavernas, mas não me lembro por quê. Pelo menos, se é algo natural, ninguém pode se julgar louco por conversar com jabutis ou pedras ou cabos de panelas ou tapiocas. Eu mesmo converso direto com as moedas lá do caixa da banca onde tenho trabalhado esses dias. Elas sempre me ignoram. Até tento fazer umas brincadeiras legais pra ver se elas perdem a timidez, mas nunca nem mesmo um ruído consegui tirar delas. Não tem problema se elas não souberem falar minha linguagem, mas há gestos universais de alegria ou ódio. Dá pra reconhecer em qualquer coisa.
     Ainda faltam uns 10.000 caracteres, e nem to com vontade de conferir o número exato. Também acho que não vou ter mais nada pra escrever logo mais, e não sei se vou conseguir gastar todas essas letrinhas que serão arquivadas no infinito espaço virtual. Li em outra revista que já existem unidades de medida virtual estupidamente abrangentes. Uma delas é o petabyte, e tinha lá na revista uns gráficos de quanto um petabyte equivale, mas eu me esqueci. Só sei que acima desse cara está o exabyte (na verdade, não sei se escrevi certo, nem se o petabyte é inferior ao exabyte ou vice-versa, mas sejam meus amigos) e, segundo um gráfico lá, que eu me lembro, pois fiquei abismado e me senti totalmente desprezado por ele, 20 exabytes seriam suficientes para arquivar todas as palavras que todos os humanos disseram, se forem transcritas, e escreveram em toda a sua história. Ou seja, desde o uga buga, passando pelos clássicos de Shakespeare, até isso que eu estou escrevendo agora, estaria disponível em um único megacomputador. É de acabar com qualquer sonho de grandeza literária.
     O ser humano criou seu próprio Universo infinito. Se antes a gente já se sentia um lixo imaginando nosso tamanho diante do Universo real, o Universo virtual está cada vez mais ilimitado. Será que algum dia transporemos as barreiras do mundo físico? Quando o Universo real estiver acabando, daqui sabe-se lá quantos mil bilhões de anos, vai ser possível escapar para uma dimensão virtual e esperar que um novo Universo surja de um novo Big Bang, que tudo se estabilize para que possamos voltar ao mundo físico? E, pense: não vai chegar uma hora em que nada mais vai fazer sentido (se é que alguma coisa já faz)? Onde estamos é físico, virtual? Ou uma mescla dos dois? Será que já passamos por isso e esse é o 2º Universo que vivemos? Pode ser que a civilização humana do Universo anterior tenha ficado presa no Universo paralelo dela.
     Por qual motivo o Uol Blog disponibiliza tantos caracteres? Já tô com a tendinite atacada aqui, de tanto escrever. Será que todos os blogs são assim? E se um cara que tem compulsão por gastar tudo que lhe é oferecido criar um blog aqui? Imagina só, o cara vê 19.500 caracteres disponíveis e vai se matar de escrever mil coisas. Aí ele acaba de postar e aparece de novo lá, 19.500 caracteres disponíveis pra uma nova postagem. Não é de deixar o cara maluco? Ele vai extrair tanta coisa dele mesmo que pode acabar se esquecendo de quem é. Coisa de louco. Isso pode dar em processo. E só de pensar que tudo isso cabe lá nos 20 exabytes, então? Frustrante. Muitas pessoas vão pensar em suicídio quando essa notícia chegar a todas as pessoas do mundo.
     Estive lendo, também, sobre como um livro é analisado para que seja declarado um clássico. Pelos livros que disseram lá, e que eu tenha lido, o cara tem que criar tantas entrelinhas quanto linhas na história. É pura insanidade. Não que cada palavra que escrevemos não esteja repleta de significados diferentes do comum, mas tinha uns lances mais complexos na matéria lá. Só não sei mais o que dizer sobre isso. De qualquer forma, grande porcaria, tudo vai pros 20 exabytes. Declarações de guerra e amor, frases impecáveis e rabiscos semianalfabetos, até mesmo todas as palavras engraçadas do Volp 2009. Acho que serei um dos suicídas.
     Acabei de falar pra um amigo meu sobre eu estar escrevendo todos os 19.500 caracteres que me deram aqui no blog. Amigão dos tempos de escola primária. Disse ele "quero só ver". E ele já está se retirando do MSN pra ir dormir. Passou–me um trailer de um filme pra eu ver. O cara é um cinéfilo feroz. Eu o desencorajei de ler esse monte de porcaria que estou escrevendo, mas é possível que em um mês ele consiga ler tudo, aos poucos, pacientemente. Falei pra ele que ia escrever sobre isso também, então ele sabe que é sobre ele a quem me refiro aqui. Um abraço, juventude. O filme é ambientado na Pérsia. Hoje eu li uma história da Turma da Mônica que se passa lá na Arábia. Estou pensando sobre como esse tipo de lugar tem ambientes perfeitos para as mais fantásticas histórias. Roupas impressionantes, palácios suntuosos, cultura interessantíssima. Um lugar bem melhor do que o Brasil ou os Estados Unidos, para se colocar personagens. A cultura ocidental é cheia de super-heróis estrelinhas e babacas, prefiro os mais estilosos do lado de lá. Corrijam-me se eu estiver errado, mas é que já foram muitos caracteres
     Eu estou com um pouco de fome. Peguei um biscoito pra comer aqui, mas ele tá murcho. E nem tá vencido, essa porcaria. Mas não tô interessado em comer mais nada. Passo fome mesmo. Ah, e abandonei o "estilo" desde o 1º parágrafo. Não me venham com frescuras da Academia Brasileira de Letras se eu usei parênteses em um dos parágrafos e hífens em outro – como agora, e acho que pela primeira vez. Esta é uma produção totalmente despropositada, sem ligação com nada, nem consigo mesma.
     Agora já são uns 3.500 caracteres. Marquei num papel a palavra "pessoas" pra me lembrar de que queria falar sobre elas. Mas não me lembro sobre o quê; vejam como este método é falho. De qualquer forma, posso falar sobre pessoas mesmo não sabendo sobre o que eu ia falar, em primeiro lugar. Posso dizer que as pessoas são estranhas. Estranhas, e legais, e sei lá, bonitas. Você pode descobrir que todas as pessoas são bonitas, é só estar com os olhos certos para cada uma. É, é o que eu acho. O mesmo pode-se dizer para a parte delas serem legais e estranhas. E todas são inteligentes, cada uma em sua especialização mais absurda ou ínfima, que seja. As pessoas deixam beijos, abraços, e adeuses, elas se importam umas com as outras, certamente. As pessoas são humanas, mas, como já teorizei, podem passar a ser caninas e felinas também. Não tem gente que fala que o cachorrinho é como um parente? Faz parte da família? E acho que pássaros também podem evoluir e se tornar tão inteligentes quanto os cachorros e gatos, no futuro, como os humanos. Talvez os peixes também. É esperar pra ver, não?
     Eu me lembro da barra de rolagem diminuindo nos primeiros parágrafos, mas agora ela não diminui mais, aqui na caixa de texto. Estranho. Acho que o espaço ao redor dela que aumentou, mas não dá pra ver. É muito difícil de se pensar nisso. Ela começa com medida 20, suponha que seja este o número, a unidade, para facilitar. Sem espaço ao redor. Aí passa pra 19, com 1 espaço ao redor. No fim, ela chega a 1 tamanho, enquanto o espaço ao redor tem 19 tamanhos. Mas se eu precisar escrever mais, ela não vai pra 0,5 tamanho. Ela permanece com 1 tamanho, mas o espaço ao redor cresce pra 20 tamanhos, 21, 22, 23... Como pode uma coisa dessas? Existe alguma teoria, dentro dos 20 exabytes, que explique isso de forma simples e convincente?
     Mas, certamente, ainda há espaço para a originalidade. Por vários motivos. O principal: Pode-se criar 20 exabytes de teorias sobre o exabyte, por diversas pessoas. Pode-se criar 20 exabytes sobre qualquer coisa, basta dar um tempo para se escrever sobre cada uma. Aí vão inventar um ultra-fodidus-megalomaniacus-estupidus-pterodonticus-byte, capaz de armazenar milhões de exabytes. Aí, sim, estaremos na roça.
     Peguei o exabyte pra Cristo, pelo visto. Meus caracteres estão acabando, e antes eu achava que nunca ia conseguir usar tantos. Agora sinto falta de mais alguns milhares de caracteres, há tantas coisas que eu queria escrever. Acho que vou comprar trocentas caixas de caracteres pra usar à vontade, sem depender do Uol Blog. Bloguol. Uolog. Bluolg. Podiam inventar um nome mais legal pra isso. E podiam arrumar o contador de caracteres, que está totalmente insano. Não sabe se faltam 1000 ou 200 de limite.
     E quem vai analisar todas estas minha palavras e procurar nas entrelinhas algo que torne este meu imenso devaneio um clássico literário?
     Acabou, chega, beijos.


(publicado, originalmente, em flutuacao.zip.net, como outros vários textos daqui)

Cumprimentando estranhos

     Um caminhão de lixo se aproximava, a seus dez quilômetros por hora. Um gari, de feições lusitanas, ostentando um farto bigode, estava montado em seu pára-choque traseiro. Um funcionário da Casas Bahia caminhava em sentido contrário ao do caminhão, na calçada da pista de sua contramão.
     Seus olhares se encontraram. Ao acaso, o funcionário da Casas Bahia pensou: "Hahaha! Se esse cara gritar 'E aí, Bahia!', eu respondo 'E aí, bigode!'".
     Do caminhão, também totalmente por acaso, o gari pensou: "Se aquele cara me chamar de bigode, respondo 'E aí, Bahia!'", como se já estivesse acostumado a ser chamado dessa forma.
     Tudo isso durou apenas três segundos, mas pareceram dez. Logo em seguida, um cisco entrou no olho do funcionário da Casas Bahia, que esqueceu-se completamente do gari, que o observou coçar os olhos durante alguns metros percorridos pelo caminhão, mas que também o esqueceu por completo assim que se distraiu com um artista fazendo papel de estátua-viva, um pouco à frente.
     Nem um nem outro chegou a pensar novamente sobre cumprimentar desconhecidos naquele dia.

E as amizades?

     E as amizades que, diariamente, deixo de fazer? Quem são os amigos, senão qualquer um? Uma pessoa como qualquer outra, mas para quem se deu atenção. Um qualquer pode se tornar especial. E, depois disso, acha-se que nunca mais vai ser possível encontrar alguém como tal. Como não? E se não conhecesse este alguém? Qualquer outro teria tomado seu lugar, impunemente. E o que seria do primeiro, se o acaso desse lugar ao outro? Qualquer um, tão desinteressante quanto todos os outros.

A lua, as nuvens, eu

     Às vezes olho para o céu, em busca da lua. Quando está encoberta, encontro entre as nuvens seu contorno, ou seu brilho. Se permaneço olhando por mais alguns instantes percebo que as nuvens sempre resolvem descobri-la, como se fossem simpáticas ao fascínio que por ela tenho. Então continuo andando, trocando olhares da lua para o chão, do chão para a lua, para não tropeçar. Quase inconscientemente, sei que faço apostas com as nuvens. "E aí, continuarão a se curvar aos meus desejos?". E, sempre, elas cobrem a lua de volta, e não a descobrem até que, sem desafios, distraidamente, eu olhe para o céu como da primeira vez. Nunca sei se a escondem porque se irritam comigo ou se para provar que não tenho domínio sobre os céus. Também não sei direito por que quase sempre as nuvens me dão essa prova de poder sobrenatural. Ou realmente sabem que gosto da lua ou então o próprio destino é meu amigo, fazendo com que eu olhe para cima na hora certa, sem que as nuvens tenham de fato algo a ver com isso. De qualquer forma, é certo que sou o que realmente sou, afinal: uma criatura que precisa da ajuda de forças maiores que a de si mesma, em primeira ou última instância.

Ele sonhava que estava na praia

     Algumas pessoas, não muitas, aproveitavam um pouco de sol e mormaço da praia naquela tarde um tanto quanto nublada. E ele estava sentado numa fraca cadeira de plástico, de armar, a cerca de cem metros da orla do mar.
     Quando viu a onda, ela já estava perto demais. Uma iminente inundação daquelas era uma cena engraçada, para ele, pelo menos em um sonho. E a onda, além de muito alta, com bons sessenta metros de altura, vinha numa velocidade tão estonteante que, numa fração ínfima de tempo, o mar já dominava a cidade inteira. Mas ele não fora varrido pela onda; um vento fortíssimo, ante a deslocação e o formato daquele colosso, vinha em sua vanguarda, e empurrava, para cima e fortemente, todos por quem passava.
     Então, Mathias voou em alta velocidade. Voou para longe. Voou alto.
     Ele ria daquilo tudo. Não com a força de uma gargalhada, mas em um leve regozijo, quase incrédulo. Ele sempre achou que seria fácil escapar de um tsunami, mas de outra maneira: subindo numa prancha e desviando dos obstáculos do caminho, como carros, postes e coisas do tipo. Nunca ele havia imaginado que seria soprado pela onda.
     Um susto! Mathias lembrou-se, parcialmente consciente em seu sonho, de que provavelmente enfrentaria uma vertigem fortíssima em breve, daquelas que acordam o sonhador ou que, se não o fazem, no mínimo interrompem qualquer sonho. Como resolver aquilo? Ele tinha certeza de que o sonho ainda não havia passado sua verdadeira mensagem; voar era comum demais. Teve uma ideia, e a aproveitou rapidamente, antes que a vertigem surgisse: resolveu tomar controle do voo e subiu mais e mais pelos céus. Ainda não tinha olhado para baixo, mas, quando o fez, o que viu foi o mar tomando conta de tudo, e tudo tão pequeno lá embaixo que, mesmo o poderoso mar, imenso e cruel em sua investida pela praia – e, em seguida, pela cidade –, já não causava mais aquela grande sensação de destruição. Parecia água escorrendo de dentro de um copo quase vazio derrubado, desviando-se de alguns objetos que por ventura estivessem sobre a mesa.
     E Mathias voou ainda mais alto, até que não via nada, exceto as nuvens brancas e gélidas, porém acolhedoras, que o cercavam por todos os lados, e que já cobriam sua visão da inundação terrena. Agora, ele estava longe de tudo. E a vertigem não dava as caras. Outra vez, parcialmente consciente, resolveu descer distraidamente dali, para não demonstrar medo à vertigem, que ele ainda acreditava estar o espreitando, atenta a qualquer sinal de desespero. Então, distraidamente, sem se dar conta – mas, no fundo, se dando conta –, esquecendo-se de quase tudo, ele começou a descer. E em alta velocidade.
     Como num sonho – ele já não queria que aquilo fosse um sonho, mas algo real, e forçando assim sua compreensão para crer que aquilo fosse a realidade, se confundia quando coisas absurdas aconteciam, e achava que estava sonhando –, ele atravessou o limite baixo das nuvens e viu a cidade se aproximando. A onda já havia passado para as cidades vizinhas, e o nível do mar estava elevadíssimo: atingia os vigésimos quintos andares dos prédios que chegavam a tal altura, ou maiores que esta. Dos outros, podia-se ver apenas vestígios de para-raios, ou de antenas, ou nada.
     Estranho – pensou Mathias – o mar não deveria acompanhar a altura da onda. Tudo bem o nível do mar subir um pouco por alguns instantes. Mas... é como se, de repente, o mar tivesse subido sessenta metros de altura, e a onda não fosse só uma onda, mas a própria parede do oceano em expansão horizontal. Parece que o mar quer juntar um grande pedaço dos continentes ao seu leito.
     Enquanto teorizava sobre a inundação, Mathias chegava cada vez mais perto do chão – ou da água, melhor dizendo. Portanto, resolveu diminuir a velocidade com que voava, o que fez com facilidade. Um vento forte ainda soprava, o que o empurrava horizontalmente. O mais rápido que pôde dirigiu-se, voando, a um prédio de cerca de cinquenta andares cuja cobertura era um quadrado vazio, exceto por uma pequena torre no meio e um cubículo que provavelmente protegia a entrada do alçapão por onde se saia para a cobertura. Cubículo este que se encontrava numa de suas laterais.
     Mathias agarrou-se a alguma coisa daquele prédio, a qual não soube identificar o que era. Mas, parecia uma corda de aço, que subia daquela pequena torre ao centro do topo do prédio. Descendo por ela, estava na cobertura. E dali, diferentemente de quando estava voando, o mar era grande e implacável; uma nova verdade. Mas não corria em grande velocidade, não mais. As águas apenas acompanhavam o crescimento do oceano, e cursavam como as de um rio ainda não tão próximo do mar, ainda não tão louco para mudar de sabor.

     Mathias via, voando pelos céus, todas as pessoas da cidade, e ao longe, muito longe, via as pessoas da outra cidade sendo sopradas pelo vento da onda-parede. Todas estavam sorridentes; a experiência de voar era incrível. Mathias refletiu por alguns instantes, imaginando se talvez aquelas pessoas fossem pessoas de verdade em seus sonhos. Um sonho de todos. Elas pareciam totalmente desligadas de Mathias, o que talvez apontasse esta hipótese como verdadeira; se fossem frutos de sua imaginação, ele sentir-se-ia dono daquelas pessoas e daquelas risadas. Mas daquela conclusão ele não pôde se aproximar mais, daquela teoria ele se esqueceu logo em seguida. Pois, na cobertura onde achava estar sozinho, havia mais alguém. E lhe tirou a atenção de tudo o mais ponderar sobre a chance que havia daquela pessoa ter voado exatamente para o mesmo prédio em que estava. Chance que se exprimia numa porcentagem que beirava casas nanodecimais – se o que ele achava sobre todas as pessoas do mundo inteiro estarem naquelas cidades do sonho fosse verdade. E aquela pessoa estava rindo bastante – claro, pensou ele, ela tinha que estar rindo, ela não seria ela se não risse disto, e muito. Ela estava com os braços cruzados, como se abraçasse a si mesma, e dobrava-se em risadas.
     Era Alessandra – era a Alê.
     Mathias caminhou em sua direção, pensando sobre o que falar, sobre o que perguntar, mas, quando percebeu, encontrava-se com ela a cinco palmos de distância de si, antes que tivesse resolvido o que dizer. Não percebeu o tempo que passou até estarem bem próximos. Eles eram da mesma altura, e olhar nos olhos uns dos outros não pedia deles mais do que apenas manterem-se em pé, em postura ereta. Ele achou que era hora de desistir dos breves lampejos de racionalidade que insistia em fazer dominar seus pensamentos e, enquanto olhava para o rosto sorridente dela – ela que, provavelmente, também havia acabado de desistir da lógica naquele mundo surreal –, Mathias decidiu que tudo que queria era abraçá-la. E foi o que fizeram.
     Andaram abraçados e, no parapeito próximo ao cubículo, se apoiaram, soltando-se do abraço por alguns instantes. Olharam para baixo, e em seguida olharam um para o outro: Mathias e Alê, Alê e Mathias, era o que eram, e as palavras que não foram proferidas por eles desde quando se encontram não açoitavam seus pensamentos, como quando se quer falar e não há coragem suficiente. Havia chegado, enfim, o momento em que não mais precisariam de muitas delas. Palavras tornaram-se mero luxo, mero complemento.
     Abraçaram-se, novamente. A tarde já ia avançada, e o sol estava se escondendo atrás do horizonte alto e ampliado do oceano – aquele dia estava acabando mais cedo; talvez todos os seguintes também. Simpáticas e densas nuvens, que naquele dia não ousavam tapar o sol, estavam pintadas em vistosos tons, utilizando harmoniosamente as fortes cores que o titã de fogo emprestava ao céu. Mathias e Alê olhavam o fluxo do mar, que forçava, ainda um pouco revolto, água salgada pelas janelas dos vigésimos quintos andares da maioria dos prédios daquele lugar. Olhavam e achavam engraçado como só se podiam ver os últimos andares de alguns prédios, e, de outros, só os para-raios, e, de outros, nada, pois acabaram ficando muito abaixo no novo nível do mar. O novo mar, que ainda não se acalmara por completo por ali, cujas rápidas ondulações tornavam-se pequenas ondas com facilidade, que logo batiam nos prédios ou em si mesmas, aplaudindo o sucesso em dominar aquele novo território.
     Talvez não fosse certo acordar daquele sonho. Talvez mais certo fosse sair voando devido ao baque do vento de ondas gigantes. Talvez mais certo fosse encontrar alguém que queria ser encontrado e que queria encontrar quem o procurava. Poderiam ficar vendo, juntos, pelo tempo que fosse, as ondas batendo no concreto das construções agora dominadas pela água salgada. Talvez eles realmente estivessem compartilhando aquele sonho com todas as pessoas do mundo, sem exceção, cada uma com as outras que sempre quisessem por perto, no topo de algum prédio – de modo que Mathias agora tinha certeza da reciprocidade que sempre almejou: de que era com ele, e só com ele, que Alê queria estar. Talvez eles fossem mais eles mesmos assim, sem falar, só sentir. Talvez eles fossem mais que apenas duas mentes em sintonia. Talvez fossem um só.
     Mathias e Alê.