domingo, 26 de setembro de 2010

Súbito descontrole

     Não é possível. Não pode ser possível que eu tenha que passar metade do meu dia num inferno de trabalho, fazendo serviço triplicado, sem uma única pausa para alguns minutos de descanso além do horário de almoço, para então chegar em casa tarde, sem poder praticar minha música porque posso incomodar os vizinhos. Tenho, seja como for, que ficar ouvindo miríades de coisas que não me interessam ouvir quando chego cansado e querendo momentos para introspecção – e, se fosse só ouvir, tudo bem; mas, tenho “obrigação” de pensar a respeito, de ter ideias para planos que não são meus. Não tenho tempo nem para pensar nos meus próprios ideais! Cada partícula de inspiração me é tirada para finalidades diversas e alheias; e o que ganho? Um cisto no pulso, para me impedir de tocar guitarra. Pesadelos – pode parecer ridículo, mas ocorreram – com clientes taciturnos me olhando feio através do breu de algum aposento da imaginação onírica e me empurrando suas fichas para que eu os atenda de uma única vez, e se desrespeitando uns aos outros e exigindo minha mediação em seus conflitos egoístas.
     Não consigo ler meus livros. Todo tempo que consigo para tal fim, nunca me encontro sozinho – só se eu fosse para lugares distantes, o que, para uma solução cotidiana, imediata, é impraticável. Escrever algo substancial, neste estado, então, quase nem cogito; meus textos estão criando aranhas. Só consigo escrever isto neste átimo de descontrole porque só assim consigo me acalmar. Queria mesmo era quebrar a louça e o armário e gritar palavrões impressionantes.
     Mas, não posso. É mais de uma da madrugada. E, ora, o Felipe? Não, o Felipe nunca perde o controle. E se sente culpado até mesmo por ficar uma hora inteira bufando, em um raríssimo ataque de nervos, se espreguiçando e se contraindo e abraçando os móveis da cozinha. Sente-se culpado por ter chegado a este ponto, sente-se culpado por não conseguir dar atenção às pessoas de quem gosta, e também se sente culpado por ter dado liberdade demais para que pessoas de quem não gosta exijam sua atenção.
     Fico planejando dar um basta, mas também me sentiria culpado.
     Este é um relato em tempo real. Estou tremendo. Mas, mais calmo. Vim me deitar. Quando começou, há uma hora, estava num misto de tédio e aborrecimento tão profundos que não havia nada que eu pudesse fazer que não me irritasse mais. Comer, ler, escrever, dormir, ouvir música; nada. Ficar parado e odiando todo o teor da existência era a única forma de não implodir. Mas, aí veio a obrigação de me movimentar, de pegar meus óculos do chão, de comer. Foi então que fui à cozinha e repuxei a camiseta para esticá-la pelo rosto e cobri-lo. Estava frio, e fiquei com o torso a descoberto por um bom tempo antes de percebê-lo.
     Fiquei pensando. Como me desgasta esta cidade imunda, cheia de animais, que se dizem homens, nojentos. Sobre como coisinhas lindas e cheias de afeto atribuído são execráveis nestas horas, tais quais um monte de fitinhas coloridas que tenho numa caixinha, um boné, uma xícara com uma careta desenhada etc. Queria pôr fogo nisso tudo, quebrar, estraçalhar. Mas, e o afeto? Por que atribuímos valores sentimentais às coisas, que nos impedem de destruí-las?
     Fiquei pensando. Sobre como queria estar em outro lugar, com determinada pessoa, em outro século – distante, num tempo bem passado, quando ainda boa parte do mundo era um mistério e a cartografia era um ofício de novidades constantes.
     Fiquei pensando. Como, de qual maneira ainda posso querer estudar, se sem isso já estou assim? Onde haveria tempo necessário para todas as minhas opções e obrigações?
     Fiquei, além disso tudo, pensando sobre a significância de meu desespero. Todo dia, quando vou trabalhar, vejo pessoas que talvez não se lembrem de seus próprios nomes andando descalças pelas ruas imundas do centro. Quando penso nelas, sinto-me ainda mais culpado por ficar angustiado com meus nobres problemas. Imagino moralistas me dizendo “Você tem sorte de poder trabalhar, mesmo que se desgaste nisso!”, “Sorte sua ter um móvel dentro de uma cozinha também sua para ter vontade de esmurrá-lo”. Mas, dentro de meu próprio contexto, tenho, sim, direito de me angustiar.
     Agora, estou mais calmo. Amanhã, arrumarei este texto todo e publicarei. Agora, vou dormir. Deixei coisas a fazer. Mas não me importo nem de relembrar quais são. Amanhã, amanhã. Hoje, já estourei. Exauri-me. Já terei dormido, acordado e revisado o texto no próximo parágrafo.
     O que de fato aconteceu; o eu das linhas acima é parte de um bloco de espaço-tempo que já passou. O texto já não contém todas as partes originais, como também possui trechos novos, adicionados pelo eu presente. Estou sob meu domínio novamente. Mas, nada mudou. Tive alguns segundos para tocar minha música depois que cheguei, hoje. O pulso, aliás, ainda dói. Hoje, pelo menos, não houve muitos conflitos na loja.
     Só não perco a razão pois forço-me a crer que algum dia estarei melhor.
     Vou ver se escrevo sobre os mistérios do mar, agora. Abraços.

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