domingo, 26 de setembro de 2010

Teorias dialogadas

     - ... Quer dizer que você acredita mesmo em um paraíso?
     - Sim; é onde, depois de nossa vida honesta pela Terra, viveremos para sempre em alegria.
     - Você tem alguma ideia do que significa, de fato, “para sempre”? Não acha que, algum dia, mesmo que esse paraíso exista, vai acabar?
     - O Reino dos Céus é eterno.
     - E o que você vai fazer durante toda uma eternidade lá? Tenho certeza de que você nunca assimilou o conceito de “eternidade”.
     - Não há necessidade de se cogitar os afazeres celestes da eternidade; simplesmente existiremos em paz divina, na presença de nossos queridos que já partiram e de outros, bons, enquanto ruirá o mundo terreno e as almas pecaminosas danarão eternamente, enquanto desfrutaremos do Paraíso, nas profundezas hediondas do Inferno.
     - Sei. Mas, como será a rotina paradisíaca? Vocês, que pretendem ir para lá a qualquer custo, vão apenas ficar olhando uns para as caras dos outros e ficar felizes com cada presença anônima aprovada para entrar em tal Reino? Será um antro de todas as emoções puras, honestas e positivas? Sobre o que conversarão? Qual será o assunto cotidiano? O baixo firmamento repleto de tenras nuvens? O sempiterno aroma de flores recém-desabrochadas, a singeleza de paisagens rurais e a vivacidade dos ingênuos animais que por ventura por lá estiverem? Dou alguns anos para não se ter mais sobre o que se conversar, não ter mais distrações. Tudo vai virar um grande tédio. E volto naquilo: mesmo o Paraíso não terá um desfecho repentino – assim como teve um começo inexplicável, o universo – mesmo em seu Deus? 
    - Você não entende. Deus é a razão. Deus, é inexplicável, e isso explica quaisquer inícios e termos. Deus é a origem, o fim e o recomeço. Deus é a unidade que abriga todas as propriedades do cosmo. Quanto à “rotina”, não pense no Paraíso como uma cópia rural da vida na Terra. Lá, estaremos distantes das preocupações; dentre elas, a que você chama de “rotina”. Viveremos num fluxo que nos impelirá distraidamente pelos deleites dos sentimentos bons. Não será um mundo físico e, destarte, corruptível. Estaremos distantes do alcance de qualquer maldade, seja exterior ou de nosso próprio interior.
     - Quando estiver por lá, nunca irão – como haverá bastante tempo para se pensar – conjeturar sobre o que os aguarda além das fronteiras do Paraíso? E o Tempo, que um dia virá para destruir a Memória? Acham que estarão seguros do final do processo que não se sabe como, nem quando – e nem mesmo se –, se iniciou, que possibilita a existência da consciência, que é o deslocamento do espaço pelo tempo? Tem certeza de que não nascerá discórdia do tédio de tantos milhares de séculos de “sentimentos bons”?
     - A percepção do tempo será diferente. Não se contarão em anos, dias, horas, como se faz aqui. Viajaremos dentro do tempo, e não através dele. E o tempo não findará. O universo não encontrará um final.
     - Se você considera, então, que não haverá ocaso para o cosmo, dará na mesma qualquer percepção do tempo a passar. Como nunca vai acabar, em algum momento o peso do acúmulo dos eventos e dos sentimentos os enfastiará, e vocês estarão eternamente presos à felicidade do Paraíso. E isto é abominável: estar preso a uma vontade, que não mais é sua, de forma inescapável.
     - Está insinuando que algum dia “enjoaremos” da presença tão mais próxima, certeira e constante de Deus? Você acha abominável viver em alegria eterna? Ora! Vocês!..., vocês são incompreensíveis. Buscam, durante a vida inteira, provar coisas tão absurdas quanto parecem ser as nossas a vocês. O que me aflige é que o que querem provar é a negação absoluta. Querem negar que exista um Mistério ancestral e infinito, sendo que nós o respiramos constantemente – não há quem não sinta a tangibilidade inextricável da existência como um todo! Querem negar tudo tenha um propósito, o que é, contraditoriamente, praticamente comprovado por suas próprias teorias – não foram vocês mesmos quem calcularam que a existência de vida, ainda mais inteligente, tão somente é possível sob circunstâncias tão específicas que se consiste um evento da mais extrema raridade?
     - Concordo; entretanto, como qualquer teoria, teísta ou ateísta, que é conjeturada – que, a partir do momento em que nasce, não se consegue provar ser verdadeira nem falsa –, surgiu, ao mesmo tempo dessa que diz sobre a raridade da vida, a hipótese dos multiversos, e de que estamos no único, ou um dos únicos, dentre infinitos outros que falharam em conceber vida. E você me dirá “ora, o que te faz pensar que teve a sorte de estar exatamente no universo certo, sendo que em todos os outros não há consciência para se sentir?”, ao que eu responderei “Por isso mesmo; a consciência, só existindo sob as condições raras em que nos encontramos, só consegue alcançar a si mesma se, obviamente, existir em algum lugar”. Só se pode existir, e saber disso, onde há essa possibilidade. Alguém tem que estar em algum lugar para se pensar sobre qualquer coisa e acabar chegando onde estamos. E o lugar só pode ser onde há a possibilidade de consciência, é claro. Estamos aqui para provar que não estamos alhures. E outra: se, aceitando a hipótese dos multiversos, ainda assim não houvesse em nenhum deles a mais singela forma de vida e consciência, se todos os versos do cosmo fracassassem em conceber a vida e atribuí-la, em algum momento, consciência de si própria e do decurso do tempo, seria como se tudo jamais tivesse existido, nem tentado existir. Não haveria alguma coisa, algum alguém para sentir o tempo passar, para sentir sua inexorabilidade. O cosmo precisa de nós para existir. Só existe através de nós. Teria sido um descaso consigo se não nos houvesse criado, para que, destarte, se sentisse sua existência. O cosmo – a menos que seja ele mesmo algo vivo e consciente, e minhas teorias não descartam essa possibilidade – existiria sem o tempo, explodiria e se encolheria novamente e voltaria ao vazio primordial sem que nada além de trocas químicas invisíveis ocorressem, sem qualquer motivo maior, mas apenas um conjunto de ações e reações arbitrárias. Se quiser, pode considerar isso uma forma de vida. Talvez o universo seja uma consciência colossal, cujas ressonâncias dos pensamentos sejam o que nos faz acreditar em deuses e ciências.
     - Chega um momento em que se deve escolher entre analisar a bênção da vida de forma branda, aceitando que possa haver uma presença de consciência pairando em cada recanto do mundo físico que não apenas a de Deus, mas de qualquer reação química, ou só aceitar a existência de vida ao que nossos olhos enxergam, o que nos pode fazer parecer muito arrogantes, quase como detentores de uma percepção aguda, perfeita, incontestável. É paradoxalmente terrível o mundo das ideias, que nos flagela com o açoite da prepotência sob qualquer tentativa de julgar, comparando, o certo e o errado, a vida e sua ausência. Veja, compreendo todas as suas teorias. Percebo que você entende a sutileza entre cada uma das crenças, afinal. Isto que estamos tendo não é uma discussão, um debate nocivo. Acredito, agora, fora de intrigas existenciais e hipotéticas, que estamos criando um agradável e construtivo laço de amizade.
     - Sim, acho que estamos. Mas, tantas teorias me cansaram a mente e até os músculos do rosto, com o esforço da concentração. Sinto tantas ideias tão entrelaçadas que prefiro deixá-las para analisar posteriormente – como se deixa para tentar soltar um embaraçado de fios de costura, onde qualquer um que for puxado erroneamente acarreta num nó quase indesatável, quando se tem as vistas descansadas, para se escolher os certos a puxar.
     - Ah, sim, também sinto o mesmo. Olha, lá vem. Você vai até qual estação?
     - Até a final.
     - Eu desço na quinta, daqui. Olha, é um daqueles trens novos! São um barato. Vamos, tem um banco para dois ali, desocupado.
     - Sim, vamos. Eu sempre vejo os trens novos da outra linha. Estes desta são raros!
     - Ah, é? Comigo é o contrário.
     - Mas, considerando o fluxo de usuários e do itinerário usual de cada um, é mais comum ver os da linha que eu disse.
     - Só se você considerar que...

(e discordaram alegremente por mais cinco estações naquele dia, e em outros; então, se tornaram e continuaram grandes amigos até que o Mistério os tomou da vida sobre a Terra e os levou para longe da Memória e para mais perto do Tempo, onde pudessem provar – ou não – suas conjeturas um ao outro)

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