- Estou com uma vontade desesperadora, maníaca, assassina de dar o murro mais forte da minha vida neste teclado.
- Faça.
- Algo me impede.
- O quê?
- Falta de dinheiro para comprar um novo. E mais coisas. Medo inconsciente de me ferir, medo das consequências, da impressão que vai causar. E outras pessoas precisam do teclado. E eu preciso dele agora. Para escrever.
- Escrever o quê?
- Sobre o fiasco que sou. Sobre como sinto que meus óculos sempre estão tortos e que não moram em minha vizinhança as pessoas que eu quero. Sinto-me mal, completamente enojado de mim, por me render à necessidade de escrever cada pensamento. Sinto-me mal por não reconhecer inúmeros erros que cometo. Mas continuo.
- Por quê?
- Algo me impele.
- Que algo?
- Milhares de pensamentos bem elaborados. Miríades deles todos os dias. Infinitas teorias que ninguém nunca sonhou. Elas circunvagam em minha mente, me levam à loucura. Mas à loucura comedida. Cada centímetro meu me odeia por isso. Cada centímetro meu quer rasgar o próximo em milímetros, mas se contém.
- E sua mãe agora aparece para te dizer sobre uma caixa de plástico. Seus pensamentos se desviam sozinhos, por nenhuma influência externa, mas recairá na caixa de plástico a culpa pela sua distração sobre o que escreve agora.
- Sim, e, neste instante, eu odeio a caixa de plástico e ponho nela a culpa. Gosto muito de minha mãe e de outras pessoas, mas hoje não.
- Hoje você está completamente nervoso e mal imagina que absurdos cometeria se as circunstâncias fossem outras. Se fossem só um mínimo diferentes.
- Quase chego a desejar que esse mínimo de diferença fosse o que me levasse a ser um torcedor fanático e irresponsável de algum time de futebol, que fosse o que me lançaria em brigas de bar e de rua. Mas... sei como sou. Se fossem outras as circunstâncias, eu estaria desejando viver numa realidade à distância de um mínimo de diferença nas circunstâncias, desejando viver nestas em que vivo. Quereria transformar meus delitos físicos em impressos.
- O que te desequilibra tanto, afinal?
- Não sei, devem ser muitas coisas. Sinto que me faltam calos nas mãos, uma cicatriz transversal em meu rosto. Sinto que me falta algum domínio sobre qualquer coisa. Sinto que me falta alguém. E tenho dores de cabeça cada vez mais frequentes. Uma agora, inclusive. Ouso acreditar que é pelo ato de pensar exaustivamente, profundamente, hiperbolicamente, sobre tudo. Até a mim pareço presunçoso, entretanto, ao tecer um comentário desses.
- E falta tanto ainda para que você exponha todos os seus temores e angústias! Faltam-lhe as palavras. Elas te odeiam, elas de você fogem, seu vocabulário sempre será forçado, você se destruirá em autocrítica. Você não nasceu para isso. Você é ótimo em não ser nada. Em estar envolto por mil portas de possibilidades e se manter indeciso. Para sempre.
- Sempre temi que fosse isso. Acredito ter entrado por uma dessas portas, mas sei que a seguro aberta com o calcanhar. Vejo as perspectivas. Vejo o que há na nova sala da porta que abri, e fico tentado pelas outras da sala anterior, mesmo as desconhecendo. Gozo um mínimo do máximo que poderia obter se soltasse a porta, e tenho a segurança de ainda poder voltar atrás. Sou completamente ridículo.
- Você é.
- Este meu pescoço que não estala como eu queria! E meu peito; sinto ainda aquela dor.
- Não acha que te fará mal continuar como é? É uma grande irresponsabilidade seu descuidado consigo porque há pessoas que, por algum motivo inexplicável, vieram a gostar de você. Aliás, como conseguiu? Quem imaginaria que faria amigos e amores neste mundo?
- Isso começou a ocorrer antes que eu pensasse sobre o assunto. Talvez eu tentasse evitar, se soubesse antecipadamente. Eles surgiram! E me agradam, e me dizem que os agrado.
- Nunca desconfiou de que possam ser robôs programados para te aturar?
- Algumas vezes, confesso, sim. Um resquício de dúvida ainda arde. Espero que meu próximo momento, a próxima fase de minha vida, seja no qual vou compreender que tudo isto, todos estes pensamentos ignominiosos que formulo, não passou de uma leve crise. Não, leve não; moderada, talvez... ou até intensa. Não sei, pode ser que amanhã alguma outra catástrofe ainda piore tudo.
- E como se sente sabendo que ficará um tanto mais calmo quando revelar este documento, pelo qual confabulamos, nas páginas virtuais que tanto abomina?
- Pois é, sinto-me e continuarei me sentindo mal. Tanto quanto como quando começamos. Talvez ainda mais. E a dor de cabeça está piorando. Não sei até onde o corpo aguenta. Tem gente que diz que problemas emocionais acabam gerando os de saúde.
- Por que não toma um remédio?
- Não quero me render. Não, pelo menos a alguma coisa não; que seja uma dor de cabeça, pelo menos a de hoje. Não, já me rendi a tanto, por motivos tão banais. Eu não quero mais me render. Não quero mais renunciar. Mas, você sabe...
- Sei. Sei que você só é heroico através deste texto. Só é líder de sua vida enquanto em frente ao monitor do computador ou debruçado sobre um papel em branco.
- Só pode ser uma maldição, uma sina.
- Espero que você encontre outros com o mesmo problema.
- De que adianta! “O mesmo problema”, você diz! Como se, mesmo sob infortúnio similar, outro indivíduo estivesse se sentindo mal da mesma forma! Como se a complexidade de meu raciocínio, moldada por anos de inúmeras experiências totalmente distintas às de quaisquer outros seres, por mais que possam eles parecer vítimas das mesmas circunstâncias, pudesse ser medida por parâmetros científicos, por algum tipo de estudo absolutamente segregado e restritivo ao qual embutirão o sufixo “logia” ou pelas deduções de algum patife metido a intelectual!
- Nunca poderá se provar qual o pior dos delírios. Crê ser o seu?
- Não. Ainda não. Ainda sou muito contido. Ainda me falta aquele mínimo, ainda me falta estar do outro lado.
- “Take me to the other side”, não é?
- Este não é o momento para músicas. Pelo menos não para essa.
- Você entra em conflito com sua própria filosofia. Não era de musicalidade que queria rechear suas obras?
- Esta não é obra minha.
- Não?
- Não estava falando de nosso diálogo, caso tenha entendido isso do último comentário.
- Não me cabe acompanhar a linha de raciocínio que sugere, então.
- Por que não?
- Sou eu quem faço as perguntas, lembre-se.
- Pois não mais as faz.
- Tem certeza?
- ... Você ainda é mais forte que eu. Pensei em como inverter os papéis, mas não pude. Ainda sou incapaz.
- Você é patético. Muitos já me derrubaram e dominaram.
- Você desconhece o vulcão submerso que ainda vai te desestruturar e destronar completamente. E esses que te venceram não terão vencido como vencerei.
- E você acredita ser esse vulcão. Menos que isso, aliás: torce para que seja.
- Esta conversa tomou maus rumos. Eu estava invocado; agora, além disso, estou confuso.
- Seu coração é arrítmico.
- Sim, às vezes o sinto acelerando um pouco, descompassando. Mas é uma sensação irreal; é reflexo de minha inconstância psicológica.
- Algum dia, quando liberar toda a vontade de quebrar teclados que reprime e agrega, você vai cometer algum erro terrível.
- Não sei se temo ou se anseio por este dia.
- Parece até que essa sua dor de cabeça é algum pensamento que se congestionou e quer irromper de sua estagnação com a mais avassaladora das razões.
- Sim, é ele. É o derradeiro pensamento, o apogeu de minha filosofia. Estarei o aguardando até o ocaso de meus dias.
- Que valha a pena da espera.
- Acabo de revisar este texto.
- Consultou o dicionário?
- Sim.
- Quantas vezes?
- Uma meia dúzia. Talvez, uma inteira.
- Errou alguma palavra?
- Uma vez coloquei um “conquanto” indevidamente. E, noutra, apliquei a palavra “incutir” quando o certo era “imbutir”. Por uma letra! Errei pela seguinte do alfabeto. Valer-me-ia nove pontos num tiro de arco e flecha.
- Se fosse como disse, seriam duas letras. O “n” virou um “m” antes do “b”. Mas o correto mesmo é “embutir”. Três letras.
- Sete pontos, então. Obrigado. Já fui lá arrumar.
- Alterou muita coisa no texto, com a revisão?
- Não muitas.
- Mudou alguma fala minha?
- Acho que sim, mas não excluí nenhum pensamento. Mudei mais as minhas, mesmo. Aquela da sala com as várias portas, por exemplo. Deixei menos ridícula. Tanto quanto possível.
- Deve ter sido difícil. Aquela analogia foi simplória ao extremo.
- Ainda acho que foi necessária.
- De qualquer forma, fez um bom texto. As pessoas vão gostar.
- Sim, vão. Geralmente gostam. Eu não as entendo.
- Será que você fará novos amigos com isto?
- Amigos, exatamente, não sei. Queria mesmo era que alguém em especial lesse.
- Acha que vai?
- Pare de me forçar a usar constantemente a expressão que mais repeti durante todo o diálogo. “Não sei”.
- Por que você quer que a pessoa em questão leia?
- Não sei.
- Previsível.
- Ardiloso.
- A dor de cabeça, ela persiste?
- Sim, mas se amenizou.
- Você ainda precisa revisar a parte que veio vindo depois daquela em que disse que revisou o texto.
- Acabo de o fazer. Uma única consulta ao dicionário, desta feita.
- Qual palavra?
- “Analogia”. E ainda tenho dúvidas.
- Logo numa frase minha?
- Desculpe-me.
- Sem ressentimentos. E é aqui que nos despedimos, não?
- Sim, antes que se exija nova revisão.
- E só de pensar que tudo isto foi consequência da atitude daquele motorista de ônibus que encrencou contigo...
- É. E deve ter sido por consequência da eliminação do Brasil da Copa, aquela atitude.
- O mundo gira por motivos estranhos e escusos.
- E um deles é você. Adeus.
- Ah! Agora você me pegou! Gostei!
-
- Ei.
-
- Ei, você ainda está aí?
-
- Foi-se! Deixou-me sozinho! Como pôde? Tratante!
- Calma, fui apenas fazer uma última revisão. Só alterei dois ou três pronomes, agora. Sabe que não resisto. Agora, tchau.
- Tchau.
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