domingo, 26 de setembro de 2010

A obrigação dos professores

     Não é obrigação apenas de professores de Português saber falar e escrever bem em nossa língua nativa. É de todos os seus falantes.

     - Mas por que eu preciso saber Português direito se trabalho com [cargo aleatório]? E se estudo [curso aleatório]?
     - Geralmente, para quem faz esse tipo de pergunta com a idade que você está, já não adianta resposta alguma. É provável que, exatamente pelo motivo de ter me perguntado algo assim, não a entenda. Entretanto, não sou de deixar de lado as poucas esperanças da erudição coletiva para com todos os seus colaboradores; então, vou te explicar. Você, como todo ser humano, deve ter domínio sobre sua língua nativa por vários motivos. Em princípio, porque a racionalidade vem da capacidade de comunicação, interação e formulação de pensamentos. O simples ato de pensar exige, para as mais complexas formulações, que levam à verdadeira e sacrossanta racionalidade humana, a habilidade de ligar e correlacionar símbolos – ou seja, os componentes de nossos sistemas alfanuméricos. São os grupos de símbolos – as palavras – que concretizam toda a abstração, interna e externa, em que vivemos, e creia-me: tudo o que existe é abstrato. Mas precisamos nomeá-lo. Precisamos nomear o máximo de coisas possíveis para que, em termos comuns – e não em gestos e desenhos subjetivos – possamos nos comunicar a respeito delas. Discordar. Teorizar. Concordar. Concluir. Somos capazes de tudo isso quase tão somente por conta da linguagem. E só por ela somos nós que temos verdadeira consciência sobre o universo. Não que os outros animais percam muito com isso; mesmo o conhecimento divino não leva a nada, porque o mistério original é maior e se encontra além de todas as expectativas de todas as ciências e religiões.
     Depois, em qualquer carreira que for, você precisará, em algum momento – ou, o que é mais certo, em vários – interagir com outras pessoas, pois o trabalho só existe e é necessário porque somos uma sociedade. Seja qual for a posição hierárquica que assumir em qualquer empresa, e mesmo se trabalhar por conta própria, você terá que se comunicar com clientes e superiores, ou subalternos. Em todos os casos, um comunicado, uma declaração, um aviso, o que for, mal-escrito é horrível. Não transmitirá segurança, nem será devidamente respeitado pelos outros.
     Ainda além, posso dizer que você não vive plenamente se não domina a linguagem. Já estamos lançados em um lugar suficientemente misterioso e, se pensarmos bem, indescritível. Já é difícil, com todo o vocabulário que temos à disposição, traduzir nossa interpretação dos sentidos para o mundo. Por tantas vezes você fica sem saber como dizer o que sente que, para não ficar constantemente angustiada, vai bloqueando essa necessidade. Você vai bloquear cada vez mais as possibilidades de definir – e, assim, de poder interagir melhor com os outros – seu íntimo, atrofiando sua vontade, sua capacidade, seu ser. Você irá sumir, será como tantos que somem diariamente da história da humanidade sem deixar rastros, será ainda mais irrelevante que um ser sem consciência, que nasce, vive, se reproduz e morre, deixando apenas a certeza da continuidade da espécie. Não que isso não seja importante, e o é, deveras; mas, nos foi dada a raríssima oportunidade da racionalidade, e melhor, a capacidade de aprimorá-la. Temos um tempo, como civilização, tão pequeno para tentar entender alguma coisa – e, mesmo que já tenhamos chegado ao ponto em que se sabe que nada se pode verdadeiramente saber, continuamos resolutos – e você e mais tantos outros como você têm coragem de passar uma vida inteira sem sequer tentar entender melhor o mundo através da linguagem? Saber que isso ocorre com alta frequência é repulsivo, blasfemo!
     - Nossa!, como você se acha.
     - ... Você fica aí, com sua cara cansada e seu olhar raso, barrento, pensando no motivo pelo qual está ouvindo a tudo que digo, e tentando encontrar palavras para rebater. Você tem a ideia de uma grande frase, de um argumento convincente, mas não tem palavras para expressá-la. Então você diz algo como “cuide da sua vida”, ou “que frescura”, e se contenta! Além, ainda tenho que ouvir que estou “com inveja”! Ainda tenho que aceitar esta crendice estimuladora de que todas as pessoas são únicas, que você é cheia de personalidade! Ah!, me poupe disso! Você e mais cem mil imbecis são absolutamente iguais! E há outras centenas de milhares em profundo estado de coma espiritual auto-induzido. É angustiante; fico imaginando: tanto progresso intelectual que poderíamos ter atingido se não fosse pelos fracos e preguiçosos como você!
     Agora, vou encerrar esta conversa, e não quero ouvir uma única palavra irritante saindo dessa sua boca. Não quero ver a menor expressão de descaso na sua cara amorfa. Nem um risinho de escárnio. Quero mesmo é que você esqueça de tudo que eu falei, pois constato que isso que você tem só pode ser uma doença incurável. E transmitida por contato prolongado. Não quero mais nem te ver, se puder.
     - Não vai mais me ver mesmo, porque enquanto você fica pensando nessas suas coisinhas cultas, eu vou estudar algo importante de verdade, que o mundo precisa hoje em dia, e não essa sua filosofia que não leva a lugar algum. Esse monte de palavrinhas bonitas, eu sou prática, não preciso disso, não tem mais necessidade disso. Você fala assim só porque sabe que eu não sei um monte de coisa que você falou. Mas, duvido que você saiba preencher uma ficha de Controle de Circulação de Chave.
     -Ah!, que me importa essa porcaria de ficha! Eu disse pra ficar quieta!
     - A boca é minha, fico quieta se eu quiser.

     E foi assim que, naquele dia, uma pessoa foi morta e outra foi presa.

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